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Família ii

Por exemplo, em que momento as coisas começaram a dar errado? Eu não sei. Sei que estava lá na maior do tempo, brincava e achava tudo fora do lugar. Meus pais eram diferentes dos pais dos outros meninos porque os meus eram vistos juntos poucas vezes no ano.

O pai se zangava fácil, então evitávamos sua companhia, embora o quiséssemos sempre por perto. Eu fantasio? Não sei.

É difícil remontar aqueles anos de agonia. O sofrimento da mãe, sobretudo esse sofrimento prolongado, demarca como um vinco. Se lembro de um carrinho ou da primeira vez que joguei videogame, ele aparece também, como uma marca d’água.

Digo assim e tudo de repente parece triste e melancólico. E, visto de longe, visto de agora, quando tenho 37 anos e não mais 11, as coisas talvez tenham essa tonalidade acinzentada. Talvez fôssemos mesmo uma família triste na qual cada membro se interrogasse o que diabos estava fazendo ali.

Mas, no dia a dia, o fato é que não éramos assim. Tínhamos nossos momentos, como quando descobrimos o jogo de baralho e faltávamos aula pra passar tardes inteiras no biriba.

Então, se lembro da minha mãe atrás da porta à espera do meu pai ou do meu pai saindo de casa mais uma vez após uma briga que tinha cruzado a madrugada e havia se encerrado de manhã com os dois trancados no quarto por horas e horas, lembro também de baralho e das férias escolares que passamos numa colônia onde conheci uma garota e me apaixonei pela primeira vez.

A gente não escolhe o que quer lembrar. Simplesmente puxa uma peça de roupa e sai arrastando atrás de si toda sorte de vestimenta, da calça ao sutiã. Lembrar é uma briga. Posso brigar com essas coisas durante toda a tarde um sábado, mas talvez seja melhor olhar pra cada uma delas e tentar encontrar um lugar onde se sintam mais à vontade. 

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