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Família

Acho que evito esse assunto, família. Antes pensava que era apenas desinteressante falar sobre a minha família. Afinal, não via atrativos em nada, somos pessoas comuns fazendo coisas banais, como brigar e ameaçar uns aos outros com objetos perfuro-cortantes.

Mas isso faz tempo, quando ainda éramos meninos e eu atirei um controle remoto no meu irmão enquanto meus pais decidiam se continuavam juntos. Ou talvez até já tivessem se separado, não lembro direito. Eu tinha 14 e estava triste na maior parte do tempo.

 Depois que meu pai saiu de casa fiquei feliz, mas uma felicidade meio culpada porque agora a família estava desfeita. Não éramos mais os cinco ou seis, mas apenas quatro ou cinco, a depender de quem estivesse presente naquele momento.

Por muito tempo a família era um assunto em torno do qual eu dava voltas e depois dizia que aquilo não interessava tanto, como quando sentamos num restaurante e, depois de vasculhar o cardápio e se surpreender com os preços, a gente resolve levantar e ir embora.

No fundo havia uma boa desculpa para esse comportamento, mas até essa desculpa era difícil de encontrar. Ainda é.

Família enlouquece a gente na mesma medida em que a enlouquecemos. Às vezes tudo que tento fazer é saber o que escreveria se resolvesse escrever sobre a minha família. Mãe, pai, dois irmãos e avó.

Hoje todos espalhados: o pai noutra casa, a avó morta, o irmão casado e com uma filha, a irmã no segundo casamento e grávida de uma segunda menina, a mãe na casa de sempre e eu aqui, às voltas com algo que não sei ainda o que é, mas a cujo encontro tenho que ir. Porque preciso ir. Mesmo não sabendo de nada. 

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