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As 12 casas

  A esta altura, não sei se é relevante falar sobre a natureza do que escrevo aqui. Certamente não é, mas vou correr esse risco. Talvez já esteja claro que acumulo pedaços, fragmentos, retalhos com que vou tentando construir algo, dar feito de coisa inteiriça, sem jamais saber ao certo se consigo, como é comum entre pessoas com essa mesma monomania. Escrevo desde 2005, quando criei o espaço, que foi mudando de nome até que Corrida espacial se firmasse por razões que não entendo. Quer dizer, até entendo. Há simbologia, um campo de interesse científico-histórico-onírico situado nessa expressão, um conjunto de sentidos que ela carrega que me fazem querer falar, que abrem janelas. Remetem tanto a espaços quanto a tempos. Justificados nome e objeto, quero dizer ao leitor eventual, aquele que chega casual ou inadvertidamente: isto não é um diário, não é um bloco de notas, não é um arquivo, não é um blog pessoal, não é um caderno de anotações. É um pouco de cada uma dessas coisas. Gosto d...

Precisamos falar sobre a cadeira gamer

  Pode parecer leviano abordar assunto tão comezinho, mas não queria terminar o dia sem tratar de um tema que considero incontornável: a naturalização da cadeira gamer como um item do cenário doméstico em tempos de live. Artefato antes de nicho e situado num contexto específico no qual é majoritariamente associado à cultura jovem, mas convertido a dado da paisagem de reuniões virtuais pelas necessidades pandêmicas, a cadeira gamer tem uma qualidade que, a meu ver, a impede de passar despercebida quando empregada para fins de auxiliar a comunicação interpessoal. De espaldar alto, espichada, com detalhes em vermelho ou noutras cores berrantes, o móvel, se podemos chamá-lo assim, galvaniza a atenção de imediato, impossibilitando a conversação em termos fluidos. Ante um convidado ou palestrante abancado numa cadeira do tipo, parte da concentração se dirige ao que ele ou ela fala, parte vasculha e se perde nos detalhes da cadeira em si, parte tenta responder por que diabos ele ou ela ...

Exames

  O amigo escreve, melhor, manda uma mensagem de áudio que escuto à moda antiga, sem acelerar. Voz pastosa, quase 11 horas da manhã. São tempos ainda de trabalho doméstico, de maneira que os hábitos se acomodaram numa encruzilhada de público/privado na qual os códigos, e o sono entre eles, se confundem. O amigo diz nessa voz melosa que fará uma bateria de exames na semana seguinte. Melhor, que está fazendo, e cita então exames de sangue, de vista, de coração etc. Uma infinidade de cuidados que não sabia que os de minha idade, os chegados aos 40, careciam de tomar. Tento lembrar de quando meu pai tinha 40, se vivia assim, se já se precavia, mas não consigo. O pai sempre foi atlético, não serve de exemplo. Corria e lutava boxe. Conto que eu mesmo fiz algo do tipo outro dia. Não correr ou lutar, mas me submeter a uma série de exames também. Tudo aparentemente normal, a médica até elogiou a pressão, segundo ela numa cadência de normalidade. Depois explicou por quê. Os homens, ela me di...

Quebranto

  Há três dias tento escrever qualquer coisa antes de dormir, mas o tempo se passa sem que tenha feito nada, exceto o de obrigação, ou seja, essas seis ou sete palavras que emprego em frases diretas que tentam comunicar um sentido, carregar uma informação, na ambição de que sejam lidas ao pé da letra, sem qualquer viés. E, quando termino, me volto ao computador, mas já estou cansado. Fico olhando a tela, rolo a barra, revisito os temas, lembro de uma ou outra anotação que poderia render algo, mas não rende. Me vem à cabeça uma reportagem que fala sobre definhamento, mas me convenço de que não estou definhando, embora algo dentro de mim sugira ter mais prudência antes de descartar essa hipótese. Dito isso, considero que nunca trabalhei tanto, nunca fiz tanto serviço doméstico e me preocupei com aspectos da casa que antes passavam batidos, nunca espirrei tanto nem me mediquei depois de espirrar sucessivamente, em casa ou na rua. O que chega a ser um problema nestes dias. Pense em ir ...

Bolsonaro e a questão do cocô

  A insistência com que Jair Bolsonaro se refere a aspectos escatológicos da vida cotidiana faz pensar que há mais por trás da fala presidencial. Mas o quê? Essa coprolalia tem propósito que não se limita a divertir a audiência? Ou é uma cortina de fumaça para uma agenda predatória? A política baixa (ou o rebaixamento da política) talvez seja o principal objetivo do ex-capitão. Ao tratar da natureza comezinha, fisiológica, Bolsonaro reduz ainda mais o campo de disputa institucional, estreitando os espaços consagrados através dos quais os atores políticos comumente transitavam e com os quais estavam habituados. Ao falar de cocô, por exemplo, o presidente se desincumbe da aura conferida pelo cargo. Desinstitucionalizado, é como se adquirisse salvaguarda para ir aonde deseje, sem restrições de fala e postura, livre para atuar à margem das balizas - daí as tantas interferências do Supremo, desfazendo atos do governante. As constantes menções a dejetos e toda sorte de vulgaridades se ...

Hotel

  Amanhã uma viagem curta, um refúgio por poucos dias. Acordamos cedo, arrumamos as malas e partimos. Asseguro-me de levar sempre o de que preciso, refaço as contas, repasso as palavras que pretendo dizer e as frases que talvez anote. Como sempre, levarei livros que ficarão de lado na maior parte do tempo, seja por desinteresse, seja porque nessas viagens a leitura, uma modalidade habitual, doméstica, se desloca, e entre o ato e a página se instaura a estranheza que a dificulta. Vou para perto, logo ali, uma reta ao fim da qual avistamos uma subida que continua assim por muito tempo, até que finalmente chegamos, quando já desconfiávamos de que a angulação em decolagem não cessaria. Devemos passar por esse hotel onde eu um dia estive. Ainda criança, talvez seis ou sete anos. O corpo arranhado de uma queda de skate, um anzol que se pendurou na roupa, uma prancha quebrada na piscina. Numa das histórias que conto a minha filha, ele é assombrado. Agora ela me pergunta se podemos dormir ...

Apocalipse

  Disparo num carro que não comando porque não sei dirigir, mas isso não importa agora. Um prédio desaba ao fundo, ruidoso. Uma ponte desmorona vagarosamente, como alguém que derrubasse uma pilha de pratos em câmera lenta no chão da cozinha de um restaurante, digo a mim mesmo sem conseguir explicar a natureza dessa imagem. Há fogo e explosões, mas não se sabe onde. Adivinham-se fumaça e gritos vindos de uma rua próxima, mas de lá não se descobre ninguém, nem vivos nem mortos, tampouco mortos-vivos. Sei que estou sonhando, algo me adverte de que o registro não é pra valer, como se houvesse um diretor por trás do pano piscando pra mim, e por isso desejo continuar. Porque sei que posso me arriscar, ao menos aqui, como se usasse as boias na piscina ou estivesse certo de que, se saltasse agora, haveria uma rede de proteção. Estou gostando do que vejo, jogando meu próprio sonho, num cruzamento entre virtualidade e realidade, entre descuido e consciência. Uma zona de risco calculado em me...