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Bolsonaro e a questão do cocô

 

A insistência com que Jair Bolsonaro se refere a aspectos escatológicos da vida cotidiana faz pensar que há mais por trás da fala presidencial. Mas o quê? Essa coprolalia tem propósito que não se limita a divertir a audiência? Ou é uma cortina de fumaça para uma agenda predatória?

A política baixa (ou o rebaixamento da política) talvez seja o principal objetivo do ex-capitão. Ao tratar da natureza comezinha, fisiológica, Bolsonaro reduz ainda mais o campo de disputa institucional, estreitando os espaços consagrados através dos quais os atores políticos comumente transitavam e com os quais estavam habituados.

Ao falar de cocô, por exemplo, o presidente se desincumbe da aura conferida pelo cargo. Desinstitucionalizado, é como se adquirisse salvaguarda para ir aonde deseje, sem restrições de fala e postura, livre para atuar à margem das balizas - daí as tantas interferências do Supremo, desfazendo atos do governante. As constantes menções a dejetos e toda sorte de vulgaridades se somam às piadas de cunho sexual, criando a persona do "homem comum". No vestir (chinela de dedo), no falar (fezes) e no agir (cargo para filho), Bolsonaro encarnaria a mentalidade do "medíocre".

Mais que ato falho, comicidade ou estupidez, portanto, o presidente cria, nessas circunstâncias, o seu próprio campo político, que é esse no qual as regras já validadas pela repetição noutros cenários e contextos passam a não valer mais nada. Desde a posse até agora, Bolsonaro avisa: o seu projeto é o de desconstrução. A sua política é a da terra arrasada.

Essa é também a função do excremento no discurso do pesselista: desidratar e esvaziar o sentido institucional da Presidência e eliminar os mediadores (vocabulares, já que sem filtro, e políticos, já que mantém comunicação direta com o seu eleitorado).

Sem mediadores que lhe impeçam a vontade de expressão (ao porta-voz cabe ora silenciar, ora reafirmar as suas palavras) e num terreno destituído de parâmetros de convivência e respeito, o presidente logra o feito de protagonizar a narrativa de governo mesmo em tempos de crise.

Bolsonaro não é um político ingênuo cujos passos vão sendo dados ao acaso. Há método e propósito nas suas palavras, ainda quando ele fala de cocô.

Publicado no O POVO em agosto de 2019

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