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A coprolalia do presidente


Decidi seguir à risca os ensinamentos do presidente e fazer cocô apenas dia sim, dia não. Deixei de lado cautelas excessivas com a saúde, pormenores orgânicos, e passei a me preocupar unicamente com o futuro do País, que está atrelado aos movimentos peristálticos do meu estômago e eu não sabia.

Ignorava que, a cada ida ao banheiro, era uma pauta do governo que eu arriscava. A cada desarranjo intestinal depois de um prato mais apimentado ou excesso de sobremesa, era a reforma da Previdência que eu, ingenuamente, punha em ameaça. Agora, se me demoro no vaso, receio que esteja causando direta ou indiretamente a morte de espécimes raras ou mesmo a queda de um ministro. 

Agradeço ao presidente pelo alerta. Cioso de que um apertar de descarga no nordeste pode detonar hectares da Amazônia ou derrubar a bolsa no sudeste, tenho evitado o mais que posso o sanitário, impondo-me um ascetismo fecal inspirado no chefe da nação, desde já exemplo a ser seguido. Seguro como posso a necessidade de evacuar a fim de contribuir também eu com essa cota de nacionalismo e assim demonstrar que estou empenhado em ajudar o Brasil a se reinserir no quadro das grandes potências, nem que seja a custo de meu sistema digestivo. 

Que jamais se diga de mim no futuro: aquele cronista não foi um patriota, cedendo facilmente aos humores da barriga e se lixando para nossa cobertura florestal! Pelas minhas contas, terei de reeducar um estômago assíduo, habituado a uma frequência regular diária, e submetê-lo a um novo regime alternado e espartano. Mas se é pelo bem de todos, estou nessa.

Além de alterarem significativamente minha rotina, as malcheirosas palavras de incentivo do presidente tiveram um efeito inesperado sobre mim. Por tabela, a coprolalia oficial me levou a um setor do conhecimento até então cinzento e pouco explorado pela academia dita séria: a “historiocoprologia”, que vem a ser nada menos que a ciência cujo objeto é a escrita por meio dos dejetos, uma área na qual o presidente tem se mostrado incrivelmente desenvolto desde as eleições. Sem isso, não teria jamais suspeitado da importância do cocô na vida pública ocidental. 

Surpreende que, mesmo hoje, não haja ainda uma história social do excremento, páginas e páginas em bom papel agrupadas num único tomo volumoso em capa dura que faça desfilar diante de nossas narinas e vistas o fio da meada que vai dos nossos antepassados, chega a gregos e romanos, atravessa a Idade Média, quando a merdalhada fez festa, aporta nos séculos XX e XXI até encontrar sua melhor expressão na retórica presidencial.

Ao final do governo, caso não reste nada além de portarias extinguindo reservas ambientais e étnicas, traremos sempre na lembrança essa preocupação desmedida do presidente com os assuntos relacionados ao cocô, pela qual os bons brasileiros haverão de ser gratos por anos e anos.

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