Disparo num carro que não comando porque não sei dirigir, mas isso não importa agora. Um prédio desaba ao fundo, ruidoso. Uma ponte desmorona vagarosamente, como alguém que derrubasse uma pilha de pratos em câmera lenta no chão da cozinha de um restaurante, digo a mim mesmo sem conseguir explicar a natureza dessa imagem.
Há fogo e explosões, mas não se sabe onde. Adivinham-se fumaça e gritos vindos de uma rua próxima, mas de lá não se descobre ninguém, nem vivos nem mortos, tampouco mortos-vivos.
Sei que estou sonhando, algo me adverte de que o registro não é pra valer, como se houvesse um diretor por trás do pano piscando pra mim, e por isso desejo continuar. Porque sei que posso me arriscar, ao menos aqui, como se usasse as boias na piscina ou estivesse certo de que, se saltasse agora, haveria uma rede de proteção.
Estou gostando do que vejo, jogando meu próprio sonho, num cruzamento entre virtualidade e realidade, entre descuido e consciência. Uma zona de risco calculado em meio ao apocalipse pessoal, uma ficção customizada e intransferível que cada indivíduo paga para viver.
Me pergunto se isso não é enredo de um filme de sci-fi com o Schwarzenegger, mas deixo isso para depois. O importante agora não é chegar a qualquer conclusão, mas viver o pesadelo e sobreviver.
Deduzo que estou experimentando uma simulação dos derradeiros momentos da civilização como a conhecemos, ou seja, que estamos prestes a desaparecer, enquanto finjo que esse desfecho é tão somente uma partida, uma projeção cuja falsidade talvez apenas eu conheça, mas, por alguma razão, não decida compartilhá-la com os demais.
Vivo o risco fictício da morte sem expressá-lo de fato, sentindo como se fosse de verdade ou me esforçando deliberadamente para parecer que seja. E, a despeito dessa consciência, continuo a jogar, vou em frente, escapo, me agacho, me escondo. Reviro escombros, desvio de uma parede que vem abaixo, evito as ruas mais cheias de pessoas em escapada, sinto adrenalina.
O jogo, na verdade, é como uma síntese de todos os filmes de catástrofe no qual não tenho as habilidades do protagonista: não sei correr, atirar, não sou cientista, não sei dirigir, não sou musculoso, tampouco domino a tecnologia que salvará o planeta, não falo com ETs que me ensinam uma linguagem especial, não combato com armas nem manejo sabres de luz como membro de uma ordem que vem mantendo o equilíbrio das galáxias.
O que sei é fugir, e é isso que faço agora. Eu fujo, corro, me escondo, me emburaco onde quer que seja, e isso basta por ora. Tento correr, encontro um lugar dentro do qual me demoro. Ali estou protegido, ninguém me encontrará, mas quem estaria interessado em me encontrar?
Nesse fim de mundo tenho a impressão de que falta algo: falta o principal. Falta o elemento causador do desastre.
Desde o início da pandemia passei a ver filmes cujo denominador comum é esse “outbreak”. Tufões, tsunamis, eras glaciais, terremotos, fossas abissais subitamente povoadas de monstros marinhos que precisam ser contidos por um exército de robôs gigantes, dinossauros que reocupam a Terra, enfim, tudo que se relacione com o desaparecimento precipitado do mundo seja de que modo for.
A razão é natural e plenamente compreensível: a Covid. A pandemia nos fez lembrar, mais uma vez, que nossa presença no planeta é uma casualidade, que a permanência dos humanos depende de fatores igualmente contingentes, entre os quais está um certo equilíbrio já desfeito e cujo desarranjo deve provocar exatamente o que passamos décadas fabulando nos cinemas.
Há muito fantasiamos o fim, num ensaio que tenta antecipar esse capítulo, mas que fracassa sempre por situá-lo em condições talvez distantes das que devem se passar quando isso realmente ocorrer, porque uma hora vai ocorrer. É o que penso enquanto espero que uma chuva de fogo acabe pra sair do buraco e procurar um apartamento vago onde possa ficar a noite.
Carrego um bloco de notas e uma caneta e decido escrever. De repente, estou sonhando, e, no sonho, registro cada movimento, que talvez seja o último, eu não sei, mas, se for, eu estarei pronto pra contar como tudo aconteceu no final.
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