Pular para o conteúdo principal

Postagens

Exames

  O amigo escreve, melhor, manda uma mensagem de áudio que escuto à moda antiga, sem acelerar. Voz pastosa, quase 11 horas da manhã. São tempos ainda de trabalho doméstico, de maneira que os hábitos se acomodaram numa encruzilhada de público/privado na qual os códigos, e o sono entre eles, se confundem. O amigo diz nessa voz melosa que fará uma bateria de exames na semana seguinte. Melhor, que está fazendo, e cita então exames de sangue, de vista, de coração etc. Uma infinidade de cuidados que não sabia que os de minha idade, os chegados aos 40, careciam de tomar. Tento lembrar de quando meu pai tinha 40, se vivia assim, se já se precavia, mas não consigo. O pai sempre foi atlético, não serve de exemplo. Corria e lutava boxe. Conto que eu mesmo fiz algo do tipo outro dia. Não correr ou lutar, mas me submeter a uma série de exames também. Tudo aparentemente normal, a médica até elogiou a pressão, segundo ela numa cadência de normalidade. Depois explicou por quê. Os homens, ela me di...

Quebranto

  Há três dias tento escrever qualquer coisa antes de dormir, mas o tempo se passa sem que tenha feito nada, exceto o de obrigação, ou seja, essas seis ou sete palavras que emprego em frases diretas que tentam comunicar um sentido, carregar uma informação, na ambição de que sejam lidas ao pé da letra, sem qualquer viés. E, quando termino, me volto ao computador, mas já estou cansado. Fico olhando a tela, rolo a barra, revisito os temas, lembro de uma ou outra anotação que poderia render algo, mas não rende. Me vem à cabeça uma reportagem que fala sobre definhamento, mas me convenço de que não estou definhando, embora algo dentro de mim sugira ter mais prudência antes de descartar essa hipótese. Dito isso, considero que nunca trabalhei tanto, nunca fiz tanto serviço doméstico e me preocupei com aspectos da casa que antes passavam batidos, nunca espirrei tanto nem me mediquei depois de espirrar sucessivamente, em casa ou na rua. O que chega a ser um problema nestes dias. Pense em ir ...

Bolsonaro e a questão do cocô

  A insistência com que Jair Bolsonaro se refere a aspectos escatológicos da vida cotidiana faz pensar que há mais por trás da fala presidencial. Mas o quê? Essa coprolalia tem propósito que não se limita a divertir a audiência? Ou é uma cortina de fumaça para uma agenda predatória? A política baixa (ou o rebaixamento da política) talvez seja o principal objetivo do ex-capitão. Ao tratar da natureza comezinha, fisiológica, Bolsonaro reduz ainda mais o campo de disputa institucional, estreitando os espaços consagrados através dos quais os atores políticos comumente transitavam e com os quais estavam habituados. Ao falar de cocô, por exemplo, o presidente se desincumbe da aura conferida pelo cargo. Desinstitucionalizado, é como se adquirisse salvaguarda para ir aonde deseje, sem restrições de fala e postura, livre para atuar à margem das balizas - daí as tantas interferências do Supremo, desfazendo atos do governante. As constantes menções a dejetos e toda sorte de vulgaridades se ...

Hotel

  Amanhã uma viagem curta, um refúgio por poucos dias. Acordamos cedo, arrumamos as malas e partimos. Asseguro-me de levar sempre o de que preciso, refaço as contas, repasso as palavras que pretendo dizer e as frases que talvez anote. Como sempre, levarei livros que ficarão de lado na maior parte do tempo, seja por desinteresse, seja porque nessas viagens a leitura, uma modalidade habitual, doméstica, se desloca, e entre o ato e a página se instaura a estranheza que a dificulta. Vou para perto, logo ali, uma reta ao fim da qual avistamos uma subida que continua assim por muito tempo, até que finalmente chegamos, quando já desconfiávamos de que a angulação em decolagem não cessaria. Devemos passar por esse hotel onde eu um dia estive. Ainda criança, talvez seis ou sete anos. O corpo arranhado de uma queda de skate, um anzol que se pendurou na roupa, uma prancha quebrada na piscina. Numa das histórias que conto a minha filha, ele é assombrado. Agora ela me pergunta se podemos dormir ...

Apocalipse

  Disparo num carro que não comando porque não sei dirigir, mas isso não importa agora. Um prédio desaba ao fundo, ruidoso. Uma ponte desmorona vagarosamente, como alguém que derrubasse uma pilha de pratos em câmera lenta no chão da cozinha de um restaurante, digo a mim mesmo sem conseguir explicar a natureza dessa imagem. Há fogo e explosões, mas não se sabe onde. Adivinham-se fumaça e gritos vindos de uma rua próxima, mas de lá não se descobre ninguém, nem vivos nem mortos, tampouco mortos-vivos. Sei que estou sonhando, algo me adverte de que o registro não é pra valer, como se houvesse um diretor por trás do pano piscando pra mim, e por isso desejo continuar. Porque sei que posso me arriscar, ao menos aqui, como se usasse as boias na piscina ou estivesse certo de que, se saltasse agora, haveria uma rede de proteção. Estou gostando do que vejo, jogando meu próprio sonho, num cruzamento entre virtualidade e realidade, entre descuido e consciência. Uma zona de risco calculado em me...

Sequências

  Todo dia os mesmos números, ou talvez sejam números distintos, com uma diferença de apenas um ou dois algarismos, não posso ter certeza. O celular toca, eu atendo, digo oi ou olá ou boa tarde ou bom dia, uma gravação começa e então desliga sozinha. Bloqueio o número, não quero que volte a ligar, mas outro é discado em algum lugar por uma mão ou programa cujo propósito é esse. Fazer contato com quem não quer mais atender um telefonema ou evitar isso a todo custo. Mas há sempre um modo de encontrar quem se esconde, a gente nunca está totalmente protegida ou a salvo do que teme ou provoca algum tipo de temor inexplicável. Essas ligações começam sempre nos dias pares, muito cedo da manhã. Depois seguem pela tarde e entram pela noite. Às vezes apenas números ímpares. Noutras, sequências que intercalam senhas antigas de cartão de crédito ou números primos, divisíveis por dois, múltiplos de três e por aí vai. Padrões, alguns mais evidentes, outros menos escancarados, como esse de ontem....

A língua da CPI

  Uma CPI se constitui sobretudo de linguagem verbal, ou seja, de um conjunto não muito amplo de termos que os senadores e senadoras repetem incansavelmente durante as mais de sete horas de depoimentos, com pausa breve para almoço ou ir ao banheiro. Tome-se o vocábulo “declinar”, por exemplo, usado e abusado pelos nobres congressistas, com destaque para declinações e emprego do verbo num sentido particular. Grosso modo, recorrem à palavra a fim de informar, de modo que vossa excelência estaria sempre declinando nomes ou verdades secretas, segredos de alcova, revelações capazes de mudar o curso da história ou, até mais frequentemente, questiúnculas que não estariam em princípio de acordo com o espírito de uma investigação parlamentar. No mais das vezes, contudo, declinar é apenas um jeito mais empolado que o senador arranja de pedir ao depoente que lhe conte uma fofoca, e nisso a CPI tem sido pródiga. Sim, a boa e velha fofoca, que edifica a alma da nação e salva o Brasil fazendo-...