Pular para o conteúdo principal

A língua da CPI

 

Uma CPI se constitui sobretudo de linguagem verbal, ou seja, de um conjunto não muito amplo de termos que os senadores e senadoras repetem incansavelmente durante as mais de sete horas de depoimentos, com pausa breve para almoço ou ir ao banheiro.

Tome-se o vocábulo “declinar”, por exemplo, usado e abusado pelos nobres congressistas, com destaque para declinações e emprego do verbo num sentido particular.

Grosso modo, recorrem à palavra a fim de informar, de modo que vossa excelência estaria sempre declinando nomes ou verdades secretas, segredos de alcova, revelações capazes de mudar o curso da história ou, até mais frequentemente, questiúnculas que não estariam em princípio de acordo com o espírito de uma investigação parlamentar.

No mais das vezes, contudo, declinar é apenas um jeito mais empolado que o senador arranja de pedir ao depoente que lhe conte uma fofoca, e nisso a CPI tem sido pródiga.

Sim, a boa e velha fofoca, que edifica a alma da nação e salva o Brasil fazendo-nos esquecer dos problemas reais (leia-se Bolsonaro) por uma fração de segundo, é um dos motores vitais da comissão e, por conseguinte, da vida pública nacional, mobilizando audiência cada vez maior e separando os brasileiros entre aqueles que querem saber do restante da história (a maioria) e aqueles que não.

Vossa excelência poderia declinar o que ele disse naquela noite durante o telefonema e antes do jantar? E o que escondia aquela carta, estaria interessado em... declinar? E sobre o encontro com o ex-ministro da Justiça num restaurante do Rio, poderia ou não? Nem um detalhezinho sequer?

E assim os legisladores se roem de curiosidade e tentam extrair dos convidados qualquer nesga de informação útil ou inútil que tempere aquele estirão de falas elípticas, cheias de circunlóquios, enunciados que se espicham e causam ansiedade a quem acompanha e quer simplesmente atalhar o depoente e pedir que se atenha ao que de fato interessa, se for possível.

Mas nem só de declinar vive a CPI. Há também os requerimentos, as vênias de lá e cá, as questões de ordem e demais itens de um palavrório que o ouvinte vai aprendendo a dominar. Tudo recoberto por esse véu de recato que mal disfarça a deseducação que se observa sem muito esforço, como uma calça a qual faltassem os fundos.

Seja nas interrupções das falas de mulheres, seja nas insinuações de banditismo de parte a parte (ver Witzel x Flavio Bolsonaro), a falsa polidez é uma das marcas da CPI: a expressão eivada de gravidade e distinção mesmo quando a intenção é unicamente mandar o colega à merda e em seguida esbofeteá-lo ali mesmo, entre microfones e apartes não concedidos.

Nada supera, entretanto, um termo já rançoso e muito desgastado mas cuja presença sobrevive na vida política brazuca (outra expressão adorável) como um zumbi vernacular em meio ao cenário pós-apocalíptico da CPI: narrativa.

Palavra não tão velha, mas também não tão nova, que já caíra em desuso pelo campo progressista, foi agora reabilitada pelo campo do retrocesso, do atraso, do iluminismo às avessas, de maneira que tudo na comissão começa ou termina com uma narrativa.

E não me peçam para citar exemplos, por favor, porque seria muito penoso ter de revisitar os pronunciamentos de Marcos Rogério ou Jorginho Mello, dois cultores desse verdadeiro gênero literário, que mistura fake news com informações colhidas pela metade, às quais acrescentam correntes de Zap e disse-me-disse palaciano com trechos de vídeos enviados por Carla Zambelli às 3 da manhã num grupo do Telegram.  

E assim se preparam as mais gordas narrativas, das quais os senadores se banqueteiam com apetite renovado a cada solene sessão, para gáudio dos espectadores. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d