Todo dia os mesmos números, ou talvez sejam números distintos, com uma diferença de apenas um ou dois algarismos, não posso ter certeza. O celular toca, eu atendo, digo oi ou olá ou boa tarde ou bom dia, uma gravação começa e então desliga sozinha.
Bloqueio o número, não quero que volte a ligar, mas outro é discado em algum lugar por uma mão ou programa cujo propósito é esse. Fazer contato com quem não quer mais atender um telefonema ou evitar isso a todo custo.
Mas há sempre um modo de encontrar quem se esconde, a gente nunca está totalmente protegida ou a salvo do que teme ou provoca algum tipo de temor inexplicável.
Essas ligações começam sempre nos dias pares, muito cedo da manhã. Depois seguem pela tarde e entram pela noite. Às vezes apenas números ímpares. Noutras, sequências que intercalam senhas antigas de cartão de crédito ou números primos, divisíveis por dois, múltiplos de três e por aí vai. Padrões, alguns mais evidentes, outros menos escancarados, como esse de ontem.
Me ligou na hora do almoço. Era formado pelos dois últimos números dos dois últimos apartamentos onde morei antes de me mudar de volta pra casa da minha mãe, acrescidos da data de nascimento da minha primeira namorada.
Inicialmente achei estranho, mas, numa iluminação como essas que acontecem nos filmes, em que sequências inteiras se destacam em contraste com um emaranhado de outros números que não representam nada e estão ali apenas para confundir, um todo feito de ruído do qual devemos extrair alguma coisa, suspeitei de que talvez houvesse algum significado.
Um significado também arbitrário, também aleatório e resultado de uma leitura enviesada de elementos numéricos dispostos ao caso e aos quais eu me lançava com certo fervor, uma crendice pessoal acalentada em fogo baixo.
Números são apenas números, nada mais que isso, disse a mim mesmo depois de atender e ouvir do outro lado a voz mecânica feminina disparando um texto previamente gravado e agora encenado nesse falso diálogo.
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