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A língua da CPI

  Uma CPI se constitui sobretudo de linguagem verbal, ou seja, de um conjunto não muito amplo de termos que os senadores e senadoras repetem incansavelmente durante as mais de sete horas de depoimentos, com pausa breve para almoço ou ir ao banheiro. Tome-se o vocábulo “declinar”, por exemplo, usado e abusado pelos nobres congressistas, com destaque para declinações e emprego do verbo num sentido particular. Grosso modo, recorrem à palavra a fim de informar, de modo que vossa excelência estaria sempre declinando nomes ou verdades secretas, segredos de alcova, revelações capazes de mudar o curso da história ou, até mais frequentemente, questiúnculas que não estariam em princípio de acordo com o espírito de uma investigação parlamentar. No mais das vezes, contudo, declinar é apenas um jeito mais empolado que o senador arranja de pedir ao depoente que lhe conte uma fofoca, e nisso a CPI tem sido pródiga. Sim, a boa e velha fofoca, que edifica a alma da nação e salva o Brasil fazendo-...

De repente cringe

Jovens acusam velhos de serem velhos e os velhos, por sua vez, os jovens de serem jovens, de modo que a guerra etária que explodiu nas redes sociais se resume a uma troca de amabilidades intergeracional cujo efeito é revelar que os jovens são jovens e os velhos, velhos, no que estão todos cobertos de razão. Afinal, faz parte do ethos jovem desgostar do hábito do velho e do velho, maldizer o gosto do jovem, um conflito que se arrasta desde que o mundo é mundo e justifica a própria existência tanto de velhos quanto de jovens. Esse é o único Fla x Flu atemporal. A isso deu-se o nome de “cringe”, ou vergonha alheia, um sentimento que talvez se expresse melhor numa palavrinha que, para mim, sumariza tudo isso com mais eficácia, graça e sem necessidade de recorrer a estrangeirismos: “uó”. Um corte de cabelo, uma roupa, uma dança ou modo de vida são “uó” quando... Bom, a gente sabe quando são, é algo que dispensa qualquer explicação, basta olhar. Aquela ombreira que a tia usava, a camisa do p...

Na fila

  Depois de um ano e meio de pandemia e das perdas familiares, da morte de um primo, de um amigo, de amigos de amigos ou de parentes que estiveram doentes e por cuja recuperação torci, estou com vacina marcada. Chegou minha vez. Sinto que não posso me expor, mesmo a ida à esquina me parece arriscada agora que tenho data e hora para a imunização contra a peste. É como se não pudesse descuidar, como se o vírus pudesse me encurralar a qualquer vacilo, agarrando-me pelo pescoço quando menos esperar. Talvez pressinta na euforia dos modos e gestos aqueles cuja imunização se avizinha e, qual bicho traiçoeiro, ataque saltando de trás da moita, frustrando a satisfação de estar protegido contra a doença. É meu pessimismo falando, por certo, mas não convém duvidar. Não recordo a última vacina tomada. Lembro de uma agulhada, mas não de vacina mesmo, tipo gripe ou outras. Estava em viagem de trabalho pelo sertão quando me senti mal, tremia dos pés à cabeça, o queixo batia. Sentei numa calçada ...

Café da manhã

  A mãe está feliz porque súbito os filhos chegam um a um, todos novamente reunidos pela primeira vez desde o início da pandemia. Saímos de casa e agora dividimos a mesa no café da manhã. Ocupo o braço do sofá, a irmã a soleira da porta, o pai a quina da mesa, o irmão está a caminho, mas deve chegar logo, vem de moto, de onde não se sabe, mas avisou pelo Whatsapp que não demora mais e que o aguardássemos para o café. Mas antes, mesmo quando eu não tinha chegado ainda, a mãe já se servira do bule e do pão e do cuscuz e do queijo, é seu aniversário e pode ditar as regras, fazer como quer, banquetear-se sem leis ou preocupações com diabetes ou a pressão alta, mas sem exageros, eu lhe direi depois, no que ela assentirá sem tanta confiança. Bato na porta, toco a campainha, entro desajeitado, o pai me abraça antes da mãe, que está sentada e se surpreende, de modo que podemos considerar ter cumprido o objetivo de não levantar qualquer suspeita quanto à chegada de cada irmão. Um do leste...

Crônica da vacina

  A Pfizer, muito carente, insistiu enquanto pode. Escreveu emails desesperados nos quais suplicava por uma palavra, qualquer que fosse, mas que o destinatário se dignasse a responder, do contrário quedaria doente sabe-se lá de que moléstia, ela previa. Mas do outro lado havia um interlocutor insensível para o que ela tivesse a dizer, de maneira que se passaram 30, 40, 50 mensagens, até chegar a 80, quando ela se convenceu de que bastava e deu tudo aquilo por encerrado: havia se cansado, não restava nada, era o fim. Quando ele finalmente a procurou, muitos meses depois, Pfizer já estava noutra, imunizada daquele vírus que a deixara como que cega para todo o corpo que não fosse o dele. A vida tinha se aberto, e ela agora passava de mão em mão, de braço em braço, no que era feliz, muito feliz. Com a Janssen foi pior. Jamais se prestou a qualquer resposta, simplesmente desapareceu, e ele sentiu na pele o que era abandono. Disse que viria, mas não veio, anunciou que chegaria, mas não c...

PCR

  Que temos sonhos estranhos na pandemia, disso já sabemos todos desde pelo menos março do ano passado, quando, às voltas com as primeiras notícias e os sinais iniciais de recolhimento domiciliar sem data para retorno, passamos a uma rotina de sobressaltos. O assombro logo se tornou o “novo normal”, essa expressão detestável que empregamos para designar o novo, duplamente falha porque incapaz de domesticar o que se anunciava e de advertir para a enormidade do desafio que vinha. Era como tapar um sol com a peneira. De modo que, já naquele momento, sonhávamos com esquisitices, a madrugada sobrelevada por imagens que antes não nos visitavam. Eu mesmo cheguei a anotar algumas delas, mas logo me desfiz, como de resto com tudo, deixei de lado e as tomei como bobagem. Hoje me arrependo, queria saber com o que me ocupava enquanto dormia. Ontem, por exemplo, sonhei fazendo um teste PCR, esse em que enfiam uma sonda nariz adentro, causando uma sensação incômoda, como posso imaginar, mas nece...

Consulta

  Hoje na médica passei um tempo calado tentando lembrar quando tinha sido a última vez que havia ido a um consultório, mas desisti porque de fato fazia bastante tempo, de maneira que me senti adormecer numa viagem a outra era geológica. Não sei se um clínico geral ou dentista ou dermatologista, porque houve esse momento em que os cabelos estavam caindo num ritmo que eu julgava acelerado mesmo para os padrões de quem perde cabelos desde muito jovem e se acostumou a vê-los se juntar no ralo do banheiro ou sobre o tampo da mesa, dentro de um livro. A médica perguntou então como eu estava, eu respondi que não sabia, e de fato era uma resposta sincera, eu não faço a menor ideia de como esteja, embora me sinta bem, nada pode assegurar, senão um exame minucioso, que tudo se passe nos conformes, que a autoimagem se ajuste ao corpo, que o corpo em si exista como eu o imagino. Ela disse que pessoas como eu, que não vão médico, costumam supor que estão bem, que têm uma saúde de ferro, e o mo...