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De repente cringe


Jovens acusam velhos de serem velhos e os velhos, por sua vez, os jovens de serem jovens, de modo que a guerra etária que explodiu nas redes sociais se resume a uma troca de amabilidades intergeracional cujo efeito é revelar que os jovens são jovens e os velhos, velhos, no que estão todos cobertos de razão.

Afinal, faz parte do ethos jovem desgostar do hábito do velho e do velho, maldizer o gosto do jovem, um conflito que se arrasta desde que o mundo é mundo e justifica a própria existência tanto de velhos quanto de jovens. Esse é o único Fla x Flu atemporal.

A isso deu-se o nome de “cringe”, ou vergonha alheia, um sentimento que talvez se expresse melhor numa palavrinha que, para mim, sumariza tudo isso com mais eficácia, graça e sem necessidade de recorrer a estrangeirismos: “uó”.

Um corte de cabelo, uma roupa, uma dança ou modo de vida são “uó” quando... Bom, a gente sabe quando são, é algo que dispensa qualquer explicação, basta olhar. Aquela ombreira que a tia usava, a camisa do pai aberta até o peito nas fotos do aniversário, o mullet do primo mais velho, tudo isso era de fazer corar já naquele início dos anos 1990, uma década por essência cringe, talvez só não mais do que a de 1980, que, por sua vez, supera a de 1970.

Eu, por exemplo, sempre fui um bocado assim, ou seja, um jovem velho ou velho jovem, a depender do lugar e de quem falava, que viera ao mundo para passar vergonha. Era motivo de chacota por não ser suficientemente jovem e adotar os códigos da mocidade, logo um alvo fácil da volúpia cringe; e tampouco velho o bastante para entender do que se tratava a velhice (pagar as contas ou abrir uma lata de cerveja no meio da tarde).

Quando dei por mim, esse tempo de apontar as falhas dos outros havia passado, e eu ficara pelo meio do caminho, um elo perdido entre minha geração e a seguinte, uma presa indefesa para quem chegava e para os que já tinham partido, no que só me restava mangar dos meus irmãos.

Ora, rir da geração que nos precedeu é uma prerrogativa existencial de qualquer pessoa que atravessa a casa dos vinte anos, até que ela mesma se torna motivo de piada dos novíssimos e assim por diante, numa sucessiva cadeia de vexames pessoais que protagonizamos antes de sermos nós mesmos as razões da pilhéria alheia.

De maneira que, querendo ou não, todo mundo é cringe de alguém. E se na sua turma ninguém é, sinal de que o cringe deve ser você.

Sem drama. Uma hora isso iria acontecer. Essa mudança de patamar é tão tênue, tão fugaz, tão imperceptível quanto os fios brancos insidiosos que, a pouco e pouco, vão dominando os pretos, esbranquiçando a basta cabeleira negra como as asas da graúna.

Até que, um dia, eis o cringe. Começa com uma bermuda cargo na fila do galeto no domingo, piora com uma combinação mais confortável de jeans com tênis e camisa social, depois com uma bebida démodé, segue-se com um acessório cujo uso está datado, mas ninguém avisou, e continua com a manutenção de hábitos já aposentados ou, pior, a nostalgia em relação a coisas enterradas pelo desenvolvimento tecnológico, como locadoras de vídeo.

Tudo isso enquanto preservamos expressões ou formas coloquiais da fala (“kkk”) ou mantemos certos gostos e rotinas (café da manhã) que, para os mais jovens, equivalem a fósseis de uma civilização há muito desaparecida. 

Mas não se preocupem: o cringe, como o crush, é apenas um nome novo para algo que já existia desde muito tempo. Assim como de repente começou, talvez de repente um dia desapareça, num salto mágico dos 13 aos 30.

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