Depois de um ano e meio de pandemia e das perdas familiares, da morte de um primo, de um amigo, de amigos de amigos ou de parentes que estiveram doentes e por cuja recuperação torci, estou com vacina marcada. Chegou minha vez.
Sinto que não posso me expor, mesmo a ida à esquina me parece arriscada agora que tenho data e hora para a imunização contra a peste. É como se não pudesse descuidar, como se o vírus pudesse me encurralar a qualquer vacilo, agarrando-me pelo pescoço quando menos esperar.
Talvez pressinta na euforia dos modos e gestos aqueles cuja imunização se avizinha e, qual bicho traiçoeiro, ataque saltando de trás da moita, frustrando a satisfação de estar protegido contra a doença. É meu pessimismo falando, por certo, mas não convém duvidar.
Não recordo a última vacina tomada. Lembro de uma agulhada, mas não de vacina mesmo, tipo gripe ou outras. Estava em viagem de trabalho pelo sertão quando me senti mal, tremia dos pés à cabeça, o queixo batia. Sentei numa calçada e só levantei a custo. Fui levado ao hospital da cidade, onde recebi medicação com aplicação por seringa na nádega.
Fora isso, talvez apenas quando criança, ou seja, muito tempo atrás. Numa delas, acho que já grandinho, fiz que ia fugir do posto de saúde, mas, como estava acompanhado de um primo ainda mais frouxo, me contive e deixei que ele protagonizasse o episódio. Passei como corajoso, mas por dentro era todo medo e pernas bambas.
Quando menino, então, nem se fala, corria léguas com medo de vacina, menção da qual me escondia ou simulava desaparecimento ou surto ou abdução. Só voltava puxado pelos cabelos, a mãe prometendo surra de pau se não fosse logo se vacinar. Depois, mais esperta, apenas dizia que iríamos ao posto, que era gotinha, mas, chegando lá, descobria no ato do que se tratava: seringa. Não adiantava estrebuchar.
O medo da vacina com agulha é das coisas mais irracionais que existem. Dói mais a expectativa da picada do que o beliscão em si, que, quando vemos, já foi. Dos terrores infantis, é o mais bobo, mas não sabemos disso quando menores, época em que tudo nos assusta, principalmente os ritos.
A presença espectral e inarredável do objeto pontiagudo manuseado por uma enfermeira com jaleco e ar muito grave que, tenho certeza, sente um prazer inconfessável enquanto aguarda a vítima da vez. Eu sentiria, não tenho dúvida.
Desde que fui informado de que iria me vacinar em breve, tenho sentido esse misto de alegria e surpresa. Jamais imaginei que me sentiria feliz com uma vacina agendada, não agora, sem necessidade, aos 41 anos, o cartão de saúde já perdido, as marcas do corpo já feitas, os fantasmas superados – alguns, pelo menos.
Uma trivialidade, mas cá estou celebrando pessoalmente essa vitória: que chegue o dia, rogo a mim mesmo, ainda que os relatos de longas filas sejam de assustar. Enquanto isso, evito ir à bodega.
Faça chuva ou sol, estarei lá, braço estirado, pronto para receber a agulhada que teria feito tanto bem a centenas de milhares de pessoas cuja vida talvez tivesse sido preservada se a bendita houvesse chegado antes, se os tempos fossem outros, se o presidente fosse outro, se não estivéssemos nesse mundo apocalíptico.
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