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Café da manhã

 

A mãe está feliz porque súbito os filhos chegam um a um, todos novamente reunidos pela primeira vez desde o início da pandemia.

Saímos de casa e agora dividimos a mesa no café da manhã. Ocupo o braço do sofá, a irmã a soleira da porta, o pai a quina da mesa, o irmão está a caminho, mas deve chegar logo, vem de moto, de onde não se sabe, mas avisou pelo Whatsapp que não demora mais e que o aguardássemos para o café.

Mas antes, mesmo quando eu não tinha chegado ainda, a mãe já se servira do bule e do pão e do cuscuz e do queijo, é seu aniversário e pode ditar as regras, fazer como quer, banquetear-se sem leis ou preocupações com diabetes ou a pressão alta, mas sem exageros, eu lhe direi depois, no que ela assentirá sem tanta confiança.

Bato na porta, toco a campainha, entro desajeitado, o pai me abraça antes da mãe, que está sentada e se surpreende, de modo que podemos considerar ter cumprido o objetivo de não levantar qualquer suspeita quanto à chegada de cada irmão. Um do leste, outro do oeste, uma que já estava lá.

A mãe completa 64 anos, mas não parece velha, é como a mãe de 30 e poucos de que me lembro quando eu mesmo não tinha a idade que tenho agora. É certo que tropeça com facilidade e esquece algumas coisas, datas, lugares, nomes. Custo a acreditar que estejamos envelhecendo.

Outro dia descuidou e foi ao chão, machucou o joelho, um talho que expôs a carne branca. Paramos numa farmácia pra comprar mertiolate, eu perguntei à atendente se fabricavam o remédio como antigamente, ou seja, se ele ainda causava dor, uma dor que superava a que sentíamos pelo machucado. Ela respondeu que não, que não ardia, podia aplicar sem medo. Sem medo. Mas eu queria era o medo, brinquei acrescentando que gostaria de me vingar da minha mãe.

Voltei ao carro e lhe ofereci o mertiolate, disse “veja, mãe, agora sou eu comprando mertiolate para colocar no seu ferimento de queda”. E daí lembramos de quando, correndo pelo quintal da vizinhança da casa da vó, pisei num caco de vidro que abriu meu pé, deixando um caminho de sangue da cozinha até a sala.

A mãe corta um pedaço de bolo e pergunta se queremos mais café, se estou bem, se dormi bastante. Digo que apenas quatro horas porque tinha de concluir certas tarefas e havia ido deitar muito tarde, duas ou três da manhã, e levantado às 7 horas, um feito e tanto pelo qual pagava com um sono que duraria o restante do dia, ela bem sabe das minhas dificuldades em estar desperto assim tão cedo.

A mãe entende, no fundo somos muito parecidos nisso, e também em tudo o mais, de maneira que apenas murmuro ou nem isso, numa comunicação destituída de significantes expressivos, algo mais próximo do primitivo, a mãe entendendo tudo o que dissesse para ela sem empregar qualquer palavra.

Mas nesse dia, o dia do seu aniversário, estava com sono e logo fiquei mais calado, o braço do sofá era duro e minhas costas doíam. Sentei numa cadeira que era muito baixa, pesquei uma fatia de pão e espalhei muita manteiga. Desde sempre gosto de manteiga e pão molhado no café, mergulhado e depois comido. Retiro o excesso na lateral da caneca e mastigo, retiro e mastigo.

A mãe parece de fato feliz, e fico também. A irmã observa tudo, o pai diverte-se com alguma coisa, os filhos agrupados em torno da mesa do café e o irmão que diz que vai chegar e que não cantássemos os parabéns antes disso.

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