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O Natal não pegou

Fui até a esquina e depois dei a volta no quarteirão inteiro, em seguida retornei pra casa por uma rua transversal até finalmente dar de cara com o mesmo portão que estou habituado a abrir todos os dias digitando uma senha de seis dígitos que é a mesma para tudo.  Pela primeira vez na vida sinto como se não estivesse no Natal, mas em qualquer época do ano, esses períodos entre datas nos quais as pessoas nem são carnavalescas nem pascalinas, mas apenas elas, desenfeitadas e à espera de que algo aconteça ou chegue logo outro momento em que se armam de espírito... Junino, por exemplo. Não é o caso de agora, e me pergunto por que diabos o Natal não pegou. O Natal não pegou na padaria, na loja de ferragens e na churrascaria. Não pegou na oficina. Pegou parcialmente no supermercado porque, enfim, é o supermercado, e lá os funcionários dependem de que essa magia efetivamente funcione. Mas mesmo ali o índice de natalinidade é baixo, diria baixíssimo. Está encarapitado no rosto do vend...

Meu país Joaquim Távora

As pessoas estão preocupadas com o novo mapa administrativo de Fortaleza e onde seus bairros devem estar a partir de 2020. Há um temor justificado de irem dormir na Regional II num dia e acordarem na VI no outro. Ou de saírem da I para a XII, numa mudança de escala sem precedentes que traria confusão para os habitantes na passagem do ano, sobretudo se precisarem apanhar um ônibus com destino ao Bairro de Fátima e acabarem descendo no Carlito Pamplona às 3 horas da manhã do dia 1º de janeiro. Do alto da experiência de quem já se mudou 12 vezes de bairro ao longo de quase 40 anos de vida, parte delas em caminhão aberto e debaixo de chuva no meio de uma semana de provas na escola, respondo que se trata apenas de burocracia e mania de novidade, nossas duas maiores vocações depois da energia eólica. Automaticamente, porém, me pus a procurar o meu país Joaquim Távora entre os 119 bairros espalhados por 39 territórios de 12 regionais diferentes. Ainda estava lá: dividia o quadrante ...

Livro secreto

Há dias procuro um livro específico que não sei qual é, mas a bagunça das estantes não tem ajudado. Reviro as pilhas, inspeciono as lombadas, checo atrás das prateleiras abarrotadas e reabro portas de armários há muito fechadas. Nada. Não está lá. É um livro de capa fina, dessas que dobram e amassam facilmente e nas quais há uma infinidade de marcas de dedos de todas as pessoas que manusearam o livro antes de mim, uma cadeia de gestos da qual não sei nada, mas intuo apenas de olhar. São impressões invisíveis, subcutâneas. Se o folheamos, de dentro desprende-se um cheiro antigo, odor de mãos e pele e objetos esquecidos, nódoas que foram se acumulando – uma de café, outra de uma substância que não consigo identificar, mas que associo a manteiga ou a algum produto gorduroso, vinho ou a oleosidade do próprio corpo, que varia conforme a geografia e a hora do dia. Não recordo a história desse livro hipotético. Na verdade, não mantive um fiapo de nada do enredo nem dos personage...

A vida é gatilho

Levo horas assim, na preparação do que virá. Tempo gasto tentando descobrir o que ainda não sei, tatibitate. Paro e retomo. Depois ando pelo corredor, em seguida vou ao banheiro e acendo o cigarro. Sopro pela janela a fumaça azulada, que sobe em espirais e se dissipa, feito caixas de diálogo de histórias em quadrinhos. Decido parar. Cogito sair, mas aonde iria a esta hora? Não há lugar, e o sol castiga neste mês. É preciso inventar uma geografia, mas isso também leva tempo. É custoso. Então planejo a viagem, Porto ou Nápoles, uma cidade mais distante. Icó? Uma passagem. Compro mas não saio. Desisto. Dois anos fora estudando esse tema sobre o qual venho pensando – qual? No caminho da serra encontro uma cruz e nos seus braços pedras enfileiradas colocadas ali por mãos de criança e adulto. É também uma abstração, coisa impalpável. O morto não tem nome naquele pedaço de chão. Celebra-se a morte anônima, que chega sob forma de doença, assassinato ou descuido na estrada. Então cad...

Novembro, quase dezembro

A comunicação da felicidade é sempre uma tarefa odiosa, dispensável e até certo ponto vergonhosa. Primeiro porque o feliz é um ingênuo, alguém a quem bastam as razões mais íntimas e os alvoroços de pequenas vitórias para se satisfazer e decretar solenemente: estou feliz. Ao feliz são indiferentes as grandes tragédias, o abismo político, Bolsonaro e o esgotamento da vida. É uma condição cujo estatuto é definido, regrado, conhecido. Diz-se de alguém que é feliz, sem a necessidade de lhe perguntar por quê. Apenas é, como se a felicidade fosse atributo pessoal, uma categoria inata da qual algumas pessoas estão organicamente providas e outras não, como os cabeludos e os calvos. Desse modo, pode-se falar de indivíduos felizes e de outros desafortunadamente infelizes como se de gordos ou magros, um traço fenotípico transmitido geneticamente diante do qual nada há que fazer, apenas agradecer e celebrar o sorteio randômico da Mãe Natureza. Talvez por isso sempre tenha preferido o ...

Conversa com o Papai Noel

Quando acordei, o velho já estava na cozinha da pousada tomando café. Vestia uma bata branca que lhe dava um ar de quem exerce a função oracular do aconselhamento amoroso. Calçava sandália de couro e usava um colar metálico com uma estrela de cinco pontas. Tinha os cabelos muito brancos caindo em cachos, enrolando-se mais ainda nas pontas, e uma barba igualmente alva, tão alva quanto enchimento de travesseiro e clara de ovo. Era gordo, mas talvez menos do que a sua profissão recomenda. Trocamos bom-dia e nos sentamos. O velho então perguntou se eu era músico. Disse que tinha me ouvido cantar na noite anterior. Eu falei que ele tinha se enganado, mas, na verdade, eu não lembrava de muita coisa, apenas que tinha bebido um pouco e depois caído na cama. Fiquei calado. Presumi que fosse um viajante do tempo, um jogador de cartas, um místico que atravessava os sertões como o beato José Lourenço fizera muito tempo atrás. Não era nada disso. Era um Papai Noel de shopping. Chegara no ...

Falta crônica

Normalmente uma crônica nasce de duas maneiras, nenhuma delas saudável: a estrita falta de tempo ou a inesgotável capacidade de adiar. Ou ambas, a depender do cenário. Agora, por exemplo. Tenho apenas meia hora pra começar a escrever seja o que for. Mastigo algumas ideias, nenhuma tão boa de que não possa me livrar, nenhuma totalmente descartável a ponto de me dar ao luxo de abrir mão e procurar outra. Como típico geminiano, perambulo nesse vale de charco entre os farrapos de pensamentos sem me decidir se falo sobre esse programa governamental que taxa as grandes pobrezas ou sobre o calor que recobre a cidade como se Fortaleza fosse uma casa de apenas dois cômodos que houvesse recebido essa borrifada de fumaça quente de um antigo carro da Sucam. Aflito porque já não disponho de tanto tempo assim, começo então um parágrafo sobre a uberização da vida, mas logo passo a outra ideia (a persistência do Kukukaya como opção de lazer), largando pra trás a crônica já iniciada para aprov...