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Meu país Joaquim Távora


As pessoas estão preocupadas com o novo mapa administrativo de Fortaleza e onde seus bairros devem estar a partir de 2020. Há um temor justificado de irem dormir na Regional II num dia e acordarem na VI no outro. Ou de saírem da I para a XII, numa mudança de escala sem precedentes que traria confusão para os habitantes na passagem do ano, sobretudo se precisarem apanhar um ônibus com destino ao Bairro de Fátima e acabarem descendo no Carlito Pamplona às 3 horas da manhã do dia 1º de janeiro.

Do alto da experiência de quem já se mudou 12 vezes de bairro ao longo de quase 40 anos de vida, parte delas em caminhão aberto e debaixo de chuva no meio de uma semana de provas na escola, respondo que se trata apenas de burocracia e mania de novidade, nossas duas maiores vocações depois da energia eólica.

Automaticamente, porém, me pus a procurar o meu país Joaquim Távora entre os 119 bairros espalhados por 39 territórios de 12 regionais diferentes. Ainda estava lá: dividia o quadrante com São João do Tauape e Dionísio Torres, irmãos de geografia cujas divisas nem sempre estão claras. Separado de Aldeota e Meireles por apenas dois números.

Foi só aí que me dei conta da encalacrada em que estávamos metidos e do cipoal numérico que o fortalezense terá de decorar de agora em diante. Além das senhas do cartão de crédito, do interfone, do banco, do CPF e do RG, da Netflix e do Spotify, teremos de levar a tiracolo num cantinho da mente mais dois algarismos: o da sua nova Regional e do território.

Imaginem chegar com virose num posto de saúde e, diante de um funcionário rigoroso que insiste em saber de que território você é, responder que não lembra e, entre enjoos e espirros, conseguir murmurar apenas o nome da mãe ou o do pai?

Antes era mais simples, claro. Cioso de que o alencarino gostava de mudança, mas não de se misturar, Juraci Magalhães, o prefeito visionário, pai dos terminais e do aterro, criou o sistema de regionais amparado numa lógica cartesiana implacável: separou ricos com ricos e pobres com pobres. Assim, bairros inteiros se juntaram a outros de mesmo perfil econômico, formando grandes bolsões de depauperados, enquanto outros, os bairros “bacanas”, deram-se as mãos numa ciranda de bem-nascidos que vigorou até hoje.

Nessa configuração, era como se algumas regionais usassem calção de tactel e camisa regata e outras, camisa polo branca com desenho de jogador ou um número estampado no peito. No meio, havia as regionais medianas, de bermuda cargo e sapatênis.

Eventualmente esses mundos se cruzavam, como nas festas do Réveillon ou nas Black Friday dos shoppings, mas quase sempre viviam nos seus quadrados, preservando três marcas do “ethos” fortalezense: a área VIP, o cercadinho e a pulseirinha.

Pois bem. A nova reforma administrativa faz tabula rasa de um desenho da cidade que sobrevive desde o fim dos anos 1990, quando o principal canal de diálogo da população era o bate-papo da TV União. É uma alteração e tanto no nosso modo de vida. Dir-se-ia revolucionária. Mexe com tudo: do comércio de rua à organização das facções criminosas, que vão ter de rever toda uma divisão do território. E, como se não bastasse, ainda colocou um bairro com nome de santa entre o Papicu e a Varjota.

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