Quando acordei, o velho já
estava na cozinha da pousada tomando café. Vestia uma bata branca que lhe dava
um ar de quem exerce a função oracular do aconselhamento amoroso. Calçava
sandália de couro e usava um colar metálico com uma estrela de cinco pontas.
Tinha os cabelos muito brancos caindo em cachos, enrolando-se mais ainda nas
pontas, e uma barba igualmente alva, tão alva quanto enchimento de travesseiro e
clara de ovo. Era gordo, mas talvez menos do que a sua profissão recomenda. Trocamos
bom-dia e nos sentamos.
O velho então perguntou se eu
era músico. Disse que tinha me ouvido cantar na noite anterior. Eu falei que
ele tinha se enganado, mas, na verdade, eu não lembrava de muita coisa, apenas
que tinha bebido um pouco e depois caído na cama. Fiquei calado. Presumi que fosse
um viajante do tempo, um jogador de cartas, um místico que atravessava os
sertões como o beato José Lourenço fizera muito tempo atrás. Não era nada
disso. Era um Papai Noel de shopping.
Chegara no último fim de
semana, um dia antes de nós, quando estreara descendo de helicóptero no
estabelecimento depois de engolir uma nuvem de poeira levantada pelas pás da
aeronave. Fora contratado para apresentar-se até 24 de dezembro às centenas de
milhares de crianças do município, que o receberam com festa. Agora bebia café
e passava manteiga no pão, exatamente como qualquer pessoa faz.
Estava hospedado no quarto
vizinho, longe dos demais integrantes do grupo de velhinhos, que neste ano
alugaram um apartamento na Praia do Futuro e às vezes saem em bando para
almoçar numa barraca da orla, causando furor. Quis saber como ele fazia para se
despir da personagem depois de sorrir e ter as bochechas apertadas durante
horas seguidas por netinhos e netinhas que não eram os seus, já que ele não
tinha filho (“na verdade, eu sou o Papai Noel mais jovem do Brasil”).
Ele me respondeu que tenta não
pensar nisso quando está à paisana, ou seja, desvestido do roupão vermelho e do
gorro que lhe são característicos. Além do mais, como gostava de cerveja e
churrasco e de vez em quando até fumava, bastava recordar um desses fins de
semana de farra na capital e pronto, a imagem do Noel ascético e devotado à
confecção de presentes ao longo do ano se desfazia rapidamente.
Mas aqui era diferente,
precisava estar constantemente concentrado, simulando inclusive um tom de voz
envelhecido e modos de idoso, esses mesmos que tinha adotado ao me dar bom-dia
no café da pousada. Ao falar contigo, ele me disse, não fui eu que falei, foi o
próprio Papai Noel. Considerei essas palavras. Pareciam mágicas, esotéricas, miraculosas.
Eu, que nunca tinha acreditado muito
em Papai Noel, havia sido cumprimentado por um sem saber de quem se tratava. Pior,
eu o tinha confundido com uma espécie de Mãe Jussara itinerante a adivinhar a
sorte interior afora. Eu, que já fora arrastado por minha mãe para encarar um Santa
Claus com barba artificial e hálito de bebida no colégio do meu bairro antigo,
era vizinho de um deles. Um Noel anônimo, que passava incógnito feito espião
pelos cômodos da pousada e pedia segredo porque me dissera que idade tinha. “Não
podem descobrir que sou tão novo”, justificou. “Isso quebraria o encanto das
crianças.”
Em troca de guardar seu
segredo, pedi que retomasse a voz “noelina” e recuperasse os gestos natalinos.
O falso velho abaixou a cabeça por uns segundos. Quando a ergueu novamente, era
outro. Com olhos estreitos e a boca levemente arqueada, desejou que fizesse uma
boa viagem de volta. “Retornar é como abraçar uma saudade”, falou. E continuou
a mastigar um pedaço de pão.
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