Normalmente uma crônica nasce
de duas maneiras, nenhuma delas saudável: a estrita falta de tempo ou a
inesgotável capacidade de adiar. Ou ambas, a depender do cenário. Agora, por
exemplo. Tenho apenas meia hora pra começar a escrever seja o que for.
Mastigo algumas ideias, nenhuma
tão boa de que não possa me livrar, nenhuma totalmente descartável a ponto de
me dar ao luxo de abrir mão e procurar outra. Como típico geminiano, perambulo
nesse vale de charco entre os farrapos de pensamentos sem me decidir se falo
sobre esse programa governamental que taxa as grandes pobrezas ou sobre o calor
que recobre a cidade como se Fortaleza fosse uma casa de apenas dois cômodos
que houvesse recebido essa borrifada de fumaça quente de um antigo carro da
Sucam.
Aflito porque já não disponho
de tanto tempo assim, começo então um parágrafo sobre a uberização da vida, mas
logo passo a outra ideia (a persistência do Kukukaya como opção de lazer),
largando pra trás a crônica já iniciada para aproveitar o retalho de um segundo
texto, ele também abandonado em outro instante, de modo que retomei o fio
anterior enquanto o presente se mantinha em suspenso e o segundo ainda não
engrenava, numa looping de agonia sem fim.
Infelizmente é assim que nasce
a crônica, não apenas do desespero, mas da mistura das palavras que temos à
disposição naquele momento, pela combinação de frases antigas e atuais, pela
reinvenção do velho, pelo cuidado com os guardados, pelo envelhecimento precoce
do novo, por tudo que acumulamos dentro e fora, pela absoluta incapacidade de
reter nas mãos por muito tempo essa matéria qualquer do cotidiano.
Uma crônica é sempre como
aquele amontoado de sabonete que a mãe ou a avó ou a tia da gente esculpia, a
fim de prolongar a sua vida útil, formando um bloco de restos de todas as cores
que usamos ainda por duas ou três lavadas. É o uso do que resiste e o elogio da
gambiarra, um assunto crônico, a bem dizer.
Mas a crônica nasce igualmente
porque temos um corpo e nesse corpo há tantos humores. Nasce porque temos sede
ou chulé, porque peidamos e arrotamos, porque falamos diferente. Nasce porque
tropeçamos na rua, porque temos inveja e gula, porque temos uma fome e às vezes
é como se nenhuma comida a aplacasse.
Uma crônica existe porque o
espelho do provador de toda loja de roupas tem essa qualidade quase esotérica
de distorcer o corpo, esticando os braços, encolhendo as pernas, aumentando a
barriga, achatando a rosto e fazendo saltarem as bochechas.
Uma crônica nasce porque nos
falta assunto e de repente o ato de escrever se desmonumentaliza, a vida é uma
miniatura, como uma casa de Legos, e nela vemos todas as peças que formam o
mosaico de pequenos desastres que cercam cada segundo dos milhares essa
precária unidade temporal que chamamos de nossa vida.
A crônica vem ao mundo sem
querer, porque a chamaram e ninguém atendeu, porque ninguém a chamou mas ela
está aqui, porque ela está aqui e agora estamos felizes. Nasce de acasos,
encontrões em festas e conversas que se fiam noutras e noutras, até darmos
conta de que temos tanto em comum, mas também muito de distante.
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