Levo horas assim, na preparação
do que virá. Tempo gasto tentando descobrir o que ainda não sei, tatibitate.
Paro e retomo. Depois ando pelo corredor, em seguida vou ao banheiro e acendo o
cigarro. Sopro pela janela a fumaça azulada, que sobe em espirais e se dissipa,
feito caixas de diálogo de histórias em quadrinhos. Decido parar.
Cogito sair, mas aonde iria a
esta hora? Não há lugar, e o sol castiga neste mês. É preciso inventar uma
geografia, mas isso também leva tempo. É custoso. Então planejo a viagem, Porto
ou Nápoles, uma cidade mais distante. Icó? Uma passagem. Compro mas não saio.
Desisto. Dois anos fora estudando esse tema sobre o qual venho pensando – qual?
No caminho da serra encontro
uma cruz e nos seus braços pedras enfileiradas colocadas ali por mãos de
criança e adulto. É também uma abstração, coisa impalpável. O morto não tem
nome naquele pedaço de chão. Celebra-se a morte anônima, que chega sob forma de
doença, assassinato ou descuido na estrada. Então cada trespassado por gesto
cruciforme é também um de casa, alguém a quem paramos e deixamos parte do que
somos: uma pedra.
Borrifo água nas plantas, que
parecem sempre as mesmas. Não gosto de plantas, prefiro os peixes. Irritam-me
os cachorros, tolero gatos. O gato gosta de mim. Chama-se Spock – nome escolhido
por minha filha. Dorme a meus pés. Sonego carinho. O animal se espicha, roça
nos dedos, oferece-se. Estico o braço até alcançá-lo. Isso foi antes. Hoje amo
o gato, procuro-o quando chego do trabalho, impaciento-me se lhe falta algo. Vemos
TV juntos. Simpatizo com bichos esquivos.
Tenho a mão pesada para o sal.
Condeno o macarrão. Capricho no azeite. Achei que teria dificuldade em retomar
essa rotina após 30 dias durante os quais tentei acreditar que deixar tudo pra
trás levaria uma vida inteira. Às vezes acordo de noite e abro a janela ou
acendo a luz à espera de nada. Madrugada, esquento o macarrão, que parece
comestível. O tempo atenua qualquer coisa.
Na estrada tinha os olhos quase
sempre voltados para as pedras que se conformavam contra as nuvens, criando as
figuras recortadas no horizonte em direção às quais partíamos logo cedo. Chegávamos
sempre à tardinha na cidade, a mesma igreja matriz, o mesmo comércio, o mesmo
sol e a mesma cerca de madeira talhada.
Ventava forte quando reabri a
porta, as cortinas infladas como a camisa descerrada de quem cruzasse o deserto
em plena tempestade. A areia ocupa os espaços entre as tábuas do piso da sala. Todos
os dias temos de varrer a pele morta que se desprende do próprio corpo, restos
acumulados nas frestas.
Deixar a casa limpa é uma
tarefa sem fim. Os pratos, os banheiros, o guarda-roupa, os batentes, as
janelas, as venezianas, os degraus e a calçada, a rua e o meio-fio. A casa
estende-se até muito longe.
Comecei a escrever sem saber o
que faria na linha seguinte, que ideias teria de apresentar caso alguém perguntasse
no que andava trabalhando ultimamente. E, agora que comecei, percebo que tudo
que diga ou faça assemelha-se a um nó, entrelaçamento de cordas mediante o qual
testamos a rigidez dos dedos e nisso descobrimos que as mãos são hábeis também
na descostura.
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