Pular para o conteúdo principal

Novembro, quase dezembro


A comunicação da felicidade é sempre uma tarefa odiosa, dispensável e até certo ponto vergonhosa. Primeiro porque o feliz é um ingênuo, alguém a quem bastam as razões mais íntimas e os alvoroços de pequenas vitórias para se satisfazer e decretar solenemente: estou feliz. Ao feliz são indiferentes as grandes tragédias, o abismo político, Bolsonaro e o esgotamento da vida.

É uma condição cujo estatuto é definido, regrado, conhecido. Diz-se de alguém que é feliz, sem a necessidade de lhe perguntar por quê. Apenas é, como se a felicidade fosse atributo pessoal, uma categoria inata da qual algumas pessoas estão organicamente providas e outras não, como os cabeludos e os calvos.

Desse modo, pode-se falar de indivíduos felizes e de outros desafortunadamente infelizes como se de gordos ou magros, um traço fenotípico transmitido geneticamente diante do qual nada há que fazer, apenas agradecer e celebrar o sorteio randômico da Mãe Natureza.

Talvez por isso sempre tenha preferido o termo contente ao feliz. Primeiro porque o contentamento é da escala do efêmero. Vem e passa, deixando rastro de saudade. É subalterno à felicidade no mundo das palavras nobres, portanto. Numa loja, o feliz é o gerente e o contente, o caixa, que se regozija momentaneamente porque sabe que esse estado se desfaz em horas ou dias.

Segundo motivo: o contente sempre o é em virtude de algo, um objetivo alcançado, alguma realização, um horizonte atingido ou a proximidade. Nesse sentido, tem amparo numa base empírica, material, pragmática, ainda que mínima. Estou contente porque consegui agendar uma viagem ou porque fiz uma tatuagem ou porque consertei minha bicicleta e a partir de amanhã passo a andar novamente. Então há contentamento, às vezes muito, transbordante, às vezes pouco, ralo, mas suficiente para tocar os dias e chegar à semana seguinte.

Agora é novembro, quase dezembro, o fim de ano surgindo no horizonte como a Lagoa da Parangaba quando voltamos de viagem de avião e de longe se vê aquele espelho d’água sobre o qual a gente acha que vai cair de barriga. A vida acelerada que converge para a passagem de uma coisa a outra, num estuário de expectativas que se cumprem total ou parcialmente. Disso se extrai o contentamento.

Por exemplo, estou contente porque é este mês e não outro. Contente porque concluí uma etapa. Contente porque são dias em que tenho disposição para a mudança (a previsão astrológica confirma). Contente porque tomei o melhor sorvete do mundo (nata com goiaba da Pardal). Contente porque, apesar disso, perdi dois quilos. Contente porque pretendo ganhar dois quilos na ceia do Natal na casa da minha mãe.

Estou contente apesar de não ter conseguido uma vaga na fila da biometria para cadastrar o título no mutirão do Centro de Eventos, de modo que o horizonte cívico para 2020 é nebuloso – eu diria desairoso, talvez abismal.

E se disser que estou contente mesmo com esse calor de Fortaleza, não estarei mentindo. Em tudo há como que um sentido de reinvenção, reencantamento e reescritura. Um tectonismo zodiacal que, para alguém que não entende patavinas de signos, tem cheiro de algo promissor.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...