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Entre as linhas de Elena Ferrante

Trecho do novo romance de Elena Ferrante seguido de breve comentário: “Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia. A frase foi murmurada em voz baixa, no apartamento que meus pais, recém-casados, tinham comprado no Rione Alto, no topo da Via San Giacomo dei Capri. Tudo — os espaços de Nápoles, a luz azul de um fevereiro muito gelado, aquelas palavras – permaneceu estático. Mas eu escapei, e continuo escapando, dentro destas linhas que têm o intuito de me dar uma história, mas, no entanto, são nada, nada meu, nada que tenha realmente começado ou sido concluído: somente um nó emaranhado, e ninguém, nem mesmo ela que neste momento está escrevendo, sabe se contém o fio certo para uma história ou é meramente uma confusão ríspida de sofrimento, sem redenção”. O fragmento é curto, com menos de 800 caracteres, mas nele é possível enxergar as principais linhas de força da prosa de Elena Ferrante. Estão presentes aí a voz feminina em primeira...

Adaptando gírias corporativas para o cearensês

Para cada jargão corporativo “in english” que cai no gosto do empresário descolado ou “startupeiro” de primeira viagem, há pelo menos uma expressão cearense tão ou mais eficiente, que qualquer um entende e cujos royalties se revertem automaticamente para a Casa Manassés. No Ceará, se você não é de Sobral ou terminou a Casa de Cultura Britânica com nota dez em todos os semestres, fatalmente terá dificuldades de entender uma palestra de qualquer firma de médio porte, esteja ela sediada no Centro Fashion, na Nogueira Tower ou no BS Design. Sim, porque o jargão corporativo é praticamente outra língua, com seus “insights”, “mentoring”, “turnover” e “approach”. Nesse universo discursivo, o cérebro não se decide se “speak” ou fala, “do you know”? Então, a depender da plateia e do facilitador, uma apresentação pode começar com pretensões de TEDx, mas, seja por inabilidade pessoal ou indisposição do grupo, descambar para aquela aula de história da Mesopotâmia que fazia todo mundo do...

Dark: o começo é o fim

Dark : segunda temporada estreou em junho de 2019 Parte I  Não sei se começo pelo fim ou principio pelo começo, já que é essa exatamente a premissa de Dark , aprofundada em sua segunda temporada. Chego a ela já tarde, depois que sites e blogs inundaram a internet de textos que explicam o final, que desmistificam cada pequeno nó, e títulos com essas palavras se sucedem, num fenômeno curioso cujo objetivo é exaurir as teses e vasculhar os vazios e cavernas seja da trama, seja dos personagens.  Foi assim que, numa investigação prévia de tudo que já havia sido publicado sobre Dark entre a estreia e agora, topei com coisas do tipo: “Entenda a segunda temporada de Dark”; “Dark: explicamos o final da 2ª temporada”; “Dark: confira a explicação do final da 2ª temporada”.  Em comum nesses textos há o desejo manifesto de esclarecer o enigma, oferecer respostas concretas a questões materiais, que admitiriam uma solubilidade palpável – assim, elucidam-se d...

O ano acaba

Qual não foi minha surpresa quando vi que a árvore do Benfica começou a ser montada. A seu lado, trabalhadores erguiam os anéis de ferro que, progressivamente, criavam a forma cônica que depois, talvez ainda em setembro ou outubro, será fartamente decorada, daquele modo que todos conhecemos. A árvore é um marcador do tempo, um ícone urbano, como o Mara Hope, o farol e o baobá do Passeio Público, todos esses símbolos que se espicham numa praça ou na rua e fazem lembrar que já estivemos ali outras vezes, noutra época, outras pessoas. Imagino o diálogo silencioso que travam entre si enquanto esta cidade agoniada vai passando, mudando e se espalhando para as margens, mais ou menos como quando exageramos no self-service e o prato abarrotado transborda. É como Fortaleza hoje, um prato-feito espalhando-se além de sua capacidade, as rodelas de tomate caindo pelas tabelas, o feijão debaixo do arroz e a mistura encarapitada sobre esse monte natalino que endireitamos sem jeito em cima...

Setembro

A comunicação da felicidade é sempre uma tarefa odiosa, dispensável e até certo ponto vergonhosa. Primeiro porque o feliz é um bobo, um ingênuo, alguém a quem bastam as razões mais íntimas e os alvoroços de pequenas vitórias para se satisfazer e decretar solenemente: estou feliz. Ao feliz são indiferentes as grandes tragédias, o abismo político e o esgotamento da vida. É uma condição cujo estatuto é definido, regrado, conhecido. Diz-se de alguém que é feliz, sem a necessidade de lhe perguntar por quê. Apenas é, como se a felicidade fosse atributo pessoal, uma categoria inata da qual algumas pessoas estão providas e outras não. Desse modo, pode-se falar de indivíduos felizes e de outros desafortunadamente infelizes. Talvez por isso sempre tenha preferido o termo contente ao feliz. Primeiro porque o contentamento é da escala do efêmero, é subalterno à felicidade no mundo das palavras nobres, portanto. O contente se regozija momentaneamente porque sabe que esse estado se desfaz ...

Intimidade

O cearense é antes de tudo um íntimo, um familiar, alguém que mesmo na rua carrega consigo a sala e a cozinha. Bastam dois minutos para que se avizinhe e mergulhe no alheio mesmo sem convite. Entre num Uber, por exemplo. Uma corrida de sete minutos. Deslocamento breve entre dois pontos A e B. No máximo três semáforos e pronto. Tudo pago no cartão. Sem necessidade de trocas mercantis concretas. Mas o que acontece?   Um sutil interrogatório que começa quase sempre com uma observação desinteressada sobre o clima na cidade (frio se está chovendo e quente se parou de ventar), passa pelas condições do asfalto (esburacado, de péssima qualidade), encaminha-se para a “indústria da multa” (o cearense que é cearense de fato sempre acredita em alguma modalidade de indústria cuja finalidade é prejudicá-lo) e deságua em algum aspecto da política atual, seja local ou nacional – o prefeito que não anda na periferia, o governador que não cuida da segurança, o presidente que só fala besteira. ...

Forró das antigas

Diz-se vulgarmente forró das antigas sobre esse cancioneiro já passado, que marcou época nas casas de show como Três Amores e também nas vãs do transporte alternativo. O forró cuja marca principal é o desamparo amoroso, a queda súbita na agonia da falta desse outro que se evadiu, a saudade marcada a fogo no corpo. Ao contrário do que o nome sugere, porém, o forró das antigas não passou. Permanece atual, falando ao presente como a boa música que é. Responde às demandas do agora com as mesmas letras glicosadas que transpunham para o ritmo característico as dores e impasses do ente apaixonado daqueles anos 1990, quando boa parte dessa produção se firmou e os adultos de hoje eram apenas adolescentes. Veja-se o exemplo da Noda de Caju, uma banda cuja singularidade começa já na corruptela do próprio nome e se estende a seus sucessos que ecoam tanto tempo depois, como é o caso de “Pétalas neon”.   Ao piano suave que abre a canção, certamente dedilhado numa performance visceral n...