Qual não foi minha surpresa quando
vi que a árvore do Benfica começou a ser montada. A seu lado, trabalhadores
erguiam os anéis de ferro que, progressivamente, criavam a forma cônica que
depois, talvez ainda em setembro ou outubro, será fartamente decorada, daquele
modo que todos conhecemos.
A árvore é um marcador do
tempo, um ícone urbano, como o Mara Hope, o farol e o baobá do Passeio
Público, todos esses símbolos que se espicham numa praça ou na rua e fazem
lembrar que já estivemos ali outras vezes, noutra época, outras pessoas. Imagino
o diálogo silencioso que travam entre si enquanto esta cidade agoniada vai
passando, mudando e se espalhando para as margens, mais ou menos como quando
exageramos no self-service e o prato abarrotado transborda.
É como Fortaleza hoje, um prato-feito
espalhando-se além de sua capacidade, as rodelas de tomate caindo pelas tabelas,
o feijão debaixo do arroz e a mistura encarapitada sobre esse monte natalino
que endireitamos sem jeito em cima da balança ante o olhar de incredulidade do
caixa do restaurante.
Que dirão entre si uma árvore
de natal, um navio encalhado, um farol e uma planta de tronco bojudo repleto de
nomes que adolescentes apaixonados foram deixando no curso de meio século? Era a
conversa imaginária que gostaria de saber agora, o que pensam esses seres animados
de nossa vida desanimada, se creem que há salvação para uma metrópole de pouca
sombra e muito carro.
Gosto de imaginar que o Mara
Hope talvez se queixasse de jamais poder andar a ver navios, vagueando em ondas
do Caça e Pesca ao Cumbuco, solto feito
essa correnteza que engole trechos de areia e os joga lá muito longe, noutra
praia, para outras gentes. E o baobá quem sabe suspirasse e dissesse que está
cansado dessa chateação de pé de planta avantajado, predicado que lhe garante
um salvo-conduto contra o corte enquanto, na Duque de Caxias ou na Dom Luís,
outros viventes tinham virado cotoco ou ido parar no horto, que é para onde vão
as plantas arrancadas à força.
E o farol? Habituada ao
abandono, a velha construção litorânea diria que já viu esse filme muitas
vezes, que os homens e os gestores vêm e vão, numa cantilena circular, mas se
lhe crescem as rachaduras e suas escadas desabam do mesmo jeito, enquanto as
paredes se esboroam com a umidade e nada se altera. Por fim, num tom
melancólico, lamentaria que o trocassem por uma roda-gigante, essa parafernália
sem poesia.
À árvore do Benfica caberia o apaziguamento
e até uns poucos grãos de otimismo, visto que sazonal e sempre nova. Contente por
esse renascimento anual, uma nova vida programada e regulada pelo calendário, o
objeto de plástico enfeitado com bolas e materiais coloridos diria – diria o
quê?
É setembro, e eu realmente gostaria
de saber o que diria uma árvore sobre o
ano que termina, as pessoas que ficam e que parte, os monumentos da memória que
resistem ao tempo, as criaturas e os bichos que não encontram espaço no avanço
do engenho que todos os dias cria novos aterros com que se recobre o antigo.
Mas uma cidade é feita também
das coisas que enterra, das que são esquecidas e das que ficam pra trás,
inscritas no seu corpo como as letras tortas em corretivo deixadas na casca
grossa daquele baobá que nos viu nascer.
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