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Setembro


A comunicação da felicidade é sempre uma tarefa odiosa, dispensável e até certo ponto vergonhosa. Primeiro porque o feliz é um bobo, um ingênuo, alguém a quem bastam as razões mais íntimas e os alvoroços de pequenas vitórias para se satisfazer e decretar solenemente: estou feliz. Ao feliz são indiferentes as grandes tragédias, o abismo político e o esgotamento da vida.

É uma condição cujo estatuto é definido, regrado, conhecido. Diz-se de alguém que é feliz, sem a necessidade de lhe perguntar por quê. Apenas é, como se a felicidade fosse atributo pessoal, uma categoria inata da qual algumas pessoas estão providas e outras não.

Desse modo, pode-se falar de indivíduos felizes e de outros desafortunadamente infelizes. Talvez por isso sempre tenha preferido o termo contente ao feliz. Primeiro porque o contentamento é da escala do efêmero, é subalterno à felicidade no mundo das palavras nobres, portanto. O contente se regozija momentaneamente porque sabe que esse estado se desfaz em horas ou dias.

Segundo porque o contente sempre o é em virtude de algo, um objetivo alcançado, alguma realização, um horizonte atingido ou a proximidade. Nesse sentido, tem amparo numa base empírica, material – estou contente porque consegui agendar uma viagem ou porque meu irmão passou no vestibular ou porque consertei minha bicicleta e a partir de amanhã passo a andar novamente. Então há contentamento, às vezes muito, transbordante, às vezes pouco, ralo, mas suficiente para tocar os dias.

Agora é setembro, por exemplo, o terço final do ano, a vida acelerada que converge para a passagem de uma coisa a outra, num desaguar de expectativas que se cumprem total ou parcialmente.

Estou contente porque é este mês e não outro. Contente porque concluí uma etapa. Contente porque são dias em que os ventos sopram bastante, ainda que tragam consigo areia que vem de longe, espalhando o detrito pela casa que depois tenho de apanhar com vassoura e pá. Em tudo há como que um sentido de reinvenção, reencantamento e reescritura.

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