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Dark: o começo é o fim


Dark: segunda temporada estreou em junho de 2019

Parte I 

Não sei se começo pelo fim ou principio pelo começo, já que é essa exatamente a premissa de Dark, aprofundada em sua segunda temporada. Chego a ela já tarde, depois que sites e blogs inundaram a internet de textos que explicam o final, que desmistificam cada pequeno nó, e títulos com essas palavras se sucedem, num fenômeno curioso cujo objetivo é exaurir as teses e vasculhar os vazios e cavernas seja da trama, seja dos personagens. 

Foi assim que, numa investigação prévia de tudo que já havia sido publicado sobre Dark entre a estreia e agora, topei com coisas do tipo:

“Entenda a segunda temporada de Dark”;

“Dark: explicamos o final da 2ª temporada”;

“Dark: confira a explicação do final da 2ª temporada”. 

Em comum nesses textos há o desejo manifesto de esclarecer o enigma, oferecer respostas concretas a questões materiais, que admitiriam uma solubilidade palpável – assim, elucidam-se desaparecimentos, elos familiares se tornam evidentes, a morte de alguém é finalmente esclarecida e por aí vai, mas isso é apenas uma parte – importante, mas não vital – da trama, que obviamente recorre a estratagemas e artifícios para prender o espectador e fazê-lo chegar ao outro lado dessa viagem espaço-temporal. 

Isso não esgota, todavia, o mistério da série, digamos assim. Pelo contrário, é apenas o seu elemento episódico, novelesco.   

O que interessa em Dark, então? O que existe nela que ultrapassa esse vaivém de pessoas através do tempo, causando não apenas confusão, mas vertigem, levando o efeito de duplicidade ao extremo?

Arrisco dizer que alguns problemas sobrevivem nesse fundo inseguro sobre o qual Jonas, Adam, Noah, Mikkel, Martha, Magnus e demais habitantes de Winden caminham, a saber: é possível tornar-se outro?

Não apenas: é possível tornar-se um outro e escapar ao que é determinado?

Mais: é possível manipular o determinado a fim de construir para si mesmo um destino desconhecido, instaurando um tempo (passado, presente e futuro) do qual não se saiba nada? Ou cada passo que damos reafirma os passos que nos levam a ser precisamente o que estamos destinados a ser? 

Finalmente: há destino ou tudo se passa como num caos gerador de múltiplas possibilidades, de que gostamos mais de umas do que de outras?

A meu ver, é disso que trata Dark em suas duas temporadas. As tensões que resultam da luta do indivíduo consigo mesmo para se tornar um outro. Os embates de construção do sujeito. Nisso se amalgamam perguntas que são desdobramentos umas das outras, como essa que serve de entrada ao universo da série alemã: o começo é já o fim?

Em Dark a resposta é sim e não, e é claro que não poderia ser diferente numa história que aposta na mistura de elementos da filosofia, da ciência e da literatura para embaralhar as noções de tempo, espaço e realidade.

Respondendo à pergunta: sim porque cada evento comporta uma cadeia cujo início é passível de mapear, como tentou fazer Jonas ao impedir o suicídio do pai.

E não porque esse lugar inaugural, como o Big Bang de que toda a vida teria se originado, sofre influência e influencia ao mesmo tempo, de modo que nenhum episódio é unicamente o propagador. Nada é tão somente resultado de uma causa.

Esse é, grosso modo, o princípio máximo do universo de Dark: tudo é ao mesmo tempo, e todos os eventos repercutem sobre si mesmos. Então o começo é o fim e vice-versa, de tal maneira que Elizabeth é filha e mãe de sua mãe, Charlotte, e Jonas é herói e vilão (não se sabe ao certo) até aqui.

Em cada um dos personagens há pelo menos duas forças em conflito para controlar e determinar aonde deve ir. Noah, antagonista da primeira temporada, ganha outro rosto na segunda, não o do diabo manipulador cuja energia se empenhava em construir a máquina do tempo para exercer controle e vencer uma guerra que opunha os seres de luz aos de sombra.

Assim acontece também com Cláudia e outras personagens. Não são quem supúnhamos que eram. São outros, e por enquanto é certo apenas que Jonas é seu próprio ente diabólico.

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