O cearense é antes de tudo um íntimo, um familiar, alguém que mesmo na rua carrega
consigo a sala e a cozinha. Bastam dois minutos para que se avizinhe e mergulhe
no alheio mesmo sem convite.
Entre num Uber, por exemplo. Uma corrida de sete
minutos. Deslocamento breve entre dois pontos A e B. No máximo três semáforos e
pronto. Tudo pago no cartão. Sem necessidade de trocas mercantis concretas. Mas
o que acontece? Um sutil interrogatório
que começa quase sempre com uma observação desinteressada sobre o clima na
cidade (frio se está chovendo e quente se parou de ventar), passa pelas
condições do asfalto (esburacado, de péssima qualidade), encaminha-se para a
“indústria da multa” (o cearense que é cearense de fato sempre acredita em
alguma modalidade de indústria cuja finalidade é prejudicá-lo) e deságua em
algum aspecto da política atual, seja local ou nacional – o prefeito que não
anda na periferia, o governador que não cuida da segurança, o presidente que só
fala besteira.
Mas, claro, não sem antes investigar algum mínimo
assunto de natureza pessoal, tais como: quanto ganha? Trabalha que horas? Gasta
quanto com gasolina? Tem filho? O pai é vivo? Qual o signo? A irmã estuda o
quê? É feliz? O cearense, in natura,
é como um gerador randômico de perguntas, uma máquina de formular dúvidas
biográficas, uma usina de curiosidades domésticas, um ser em constante estado
de vendedor de cartões da C&A, pronto a atacar seja em que lugar for e em
qualquer circunstância. É a representação máxima da “indústria da intimidade” –
se se pode chamá-la assim.
Não sei se faz por mal, se essa aproximação forçada
é mero cacoete ou falta de jeito, como se, pela aspereza da terra e escassez de
recursos, o nativo se pusesse por instinto em modalidade social, de modo a
sempre estabelecer amizades, condição da qual resulta aqui e ali uma vantagem –
um amigo que ajuda com documentação, outro que avia uma multa no Detran, um
terceiro que aluga equipamento de som para aniversário, um que facilita com uma
conta na Caixa etc. Ou seja, coisas práticas que atenuam adversidades mediante
um arranjo no centro do qual está o coleguismo adquirido no cotidiano.
E, por essa razão, não se pode desperdiçar nenhuma
oportunidade. A seu lado pode estar alguém que vai indicá-lo para uma vaga numa
empresa, um amigo de rolê, um crush, um sócio ou simplesmente um cara que
estudou com o primo da sua mãe quando vocês moravam num bairro distante do qual
você não lembra mais nada.
E aí entra outro ponto dessa intimidade que transborda
e asfixia ao mesmo tempo: no fundo, é como se cada cearense sentisse que
conhecesse o outro – daí a afeição imediata, desmesurada e irrestrita.
Afinal, a gente veio tangida do interior, as
gerações de filhos da capital são parcas, duas ou três, no máximo, de maneira
que as chances de que o camarada ao lado na fila do banco seja um parente são
não apenas razoáveis, mas muito grandes. Então não custa perguntar.
Foi assim que o motorista de um transporte por
aplicativo quis saber se eu era um Carlos que tinha morado na Parquelândia
entre 2005 e 2007 e pegava o ônibus na parada do Instituto dos Cegos às terças
e quintas.
Eu disse que não, não era, e seguimos viagem.
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