Trecho do novo romance de Elena
Ferrante seguido de breve comentário:
“Dois anos antes de sair de
casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia. A frase foi murmurada em
voz baixa, no apartamento que meus pais, recém-casados, tinham comprado no
Rione Alto, no topo da Via San Giacomo dei Capri. Tudo — os espaços de Nápoles,
a luz azul de um fevereiro muito gelado, aquelas palavras – permaneceu
estático. Mas eu escapei, e continuo escapando, dentro destas linhas que têm o
intuito de me dar uma história, mas, no entanto, são nada, nada meu, nada que
tenha realmente começado ou sido concluído: somente um nó emaranhado, e
ninguém, nem mesmo ela que neste momento está escrevendo, sabe se contém o fio
certo para uma história ou é meramente uma confusão ríspida de sofrimento, sem
redenção”.
O fragmento é curto, com menos
de 800 caracteres, mas nele é possível enxergar as principais linhas de força da
prosa de Elena Ferrante. Estão presentes aí a voz feminina em primeira pessoa,
o masculino como fator de violência/agressão, o abandono, a tentativa de escape
e a salvação pela escrita.
Além disso, claro, há Nápoles e
sua presença estratificada no passado que se confunde com a memória da qual a
narradora tenta, aparentemente, fugir.
Foge por meio da escrita, que
se mostra arredia, insuficiente e ao final sem redenção possível.
Destaco sobretudo a segunda
metade da passagem, que começa aqui: “Mas eu escapei, e continuo escapando,
dentro destas linhas que têm o intuito de me dar uma história, mas, no entanto,
são nada, nada meu”.
A história contada é a tentativa
de encontrar uma história pessoal,
cujo marco é esse episódio nada banal que antecede a separação dos pais: “Dois
anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia”.
A ofensa não é gritada, mas “murmurada”,
como uma verdade autoevidente que se manifesta: ela é feia. Não apenas feia,
mas “muito feia”.
É uma agressão não apenas à
menina, à filha, mas também à mãe, já que o reconhecimento tem a finalidade de
estabelecer uma distância em relação ao pai, que depois sai de casa.
O abandono é pressagiado por
essa cicatriz da feiura que o pai impõe à filha. É o seu legado, não somente o
afastamento, mas o abismo que o homem cria ali – a filha não se liga a ele
porque é feia, vaticínio que atesta toda uma vida de dificuldades que o pai
vislumbra.
É isso que a protagonista
parece ruminar passado tanto tempo: uma marca de sangue. Mas ela continua
escapando.
Eis, portanto, a típica
narrativa ferrantiana, com todos os seus ingredientes fartamente trabalhados na
tetralogia, com sua galeria de mulheres que tentam reatar um fio solto de
passado, presente e futuro, recompondo-se e reconfigurando papéis sociais, a
fim de costurar os pedaços faltantes de uma história.
Essa pequena apreciação é feita a
partir da tradução livre direto do italiano publicada pelo site da revista “Quatro Cinco Um”.
Segundo a Edizione E/O, casa
editorial de Ferrante, o romance sai em novembro deste ano na Itália. Não há previsão
de publicação no Brasil.
A obra de
Ferrante vem sendo traduzida para o português por Maurício Santana Dias, Marcello Lino e Francesca
Cricelli.
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