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Postagens

A experiência

Levei dois caldos depois de meia hora decidindo se entraria no mar ou se continuaria estirado na areia ouvindo música e tomando sol, como qualquer adulto faz ao constatar que a maré está naqueles dias tensos de pré-ressaca. Pra piorar: sob efeito da lua cheia, fenômeno conhecido por desorganizar hormônios, desarmonizar o zodíaco e assanhar as palhas do coqueiro existencial que todos nós cultivamos nesse frágil jardinzinho instalado no coração (que imagem terrivelmente sertanejo-universitária, meus leitores, mas estes são tempos difíceis nos quais o modão* é a expressão máxima de toda dor e sofrimento amorosos). No primeiro caldo, um golpe inesperado, saí rolando onda abaixo e acima, feito uma mala solta no bagageiro de um carro que cruza o sertão cearense numa estrada carroçável. O segundo, menos violento, me levou ao chão com carinho, quase como se se desculpasse de aplicar uma queda logo após ter sido derrubado pela onda anterior. Explico: para esse eu tive condiçõe...

De amor e desamor

Talvez mais que o amor, o desamor. Histórias cuja leitura conduz a essa montanha-russa de sentimentos na esteira da qual resta uma paisagem de ruína, corpos danificados e vidas fraturadas. Uma lista breve de obras destinadas desde sempre aos “desnamorados”, aos desgarrados, aos desamparados e avulsos, seres cujos laços frouxos se fazem e refazem constantemente. Mas não se enganem: amor e desamor andam sempre em par, enovelados pelo mesmo barbante que ata os destinos das personagens destes romances.  É um equívoco supor que se possa amar sem desamar e vice-versa.   Laços , de Domenico Starnone Divórcio , de Ricardo Lísias O amor de uma boa mulher , de Alice Munro Um copo de cólera , de Raduan Nassar Os enamoramentos , de Javier Marías   Um amor incômodo , de Elena Ferrante Formas de voltar para casa , de Alejandro Zambra   Desesperados , de Paula Fox A única história , de Julian Barnes Nossas noites , de Kent Ha...

Vai desculpando qualquer coisa

Está aí uma frase que sempre me intrigou – “Vai desculpando qualquer coisa”. Minha tia costuma falar quando lhe faço uma visita, ao fim da qual, depois de comer bolo e tomar café, sapeca com um misto de vergonha e orgulho: desculpa qualquer coisa, meu filho. Mas desculpar o quê? O café ou o bolo? Ou será que a tia se refere a alguma nódoa familiar que ainda desconheço, um crime muito grave até hoje mantido em segredo por todos e do qual eu devesse saber algo, mas continuo ignorante? Não sei. Cacoete linguístico, o “desculpa qualquer coisa” tem alcance maior, porém, a ponto de resumir a vida doméstica de qualquer família cearense: ao acioná-lo, é como se uma pessoa se confessasse e seus pecados como anfitrião, reais ou imaginários, estivessem expurgados. É, ao mesmo tempo, um pedido de desculpas por tudo e por nada, presente e futuro, que retroage aos últimos fatos, mas também avança no tempo e abarca a série de coisas que ainda podem acontecer – daí o “vai desculpa...

Vidência

Ainda no café, folheio uns jornais, leio as resenhas, vasculho os rastros da trajetória de uma personagem que persigo há dias, sem sucesso. Falo com a mãe ao telefone. Ando preocupado com a sua saúde, eu lhe digo, e desligo. A mãe tão parecida comigo em tudo, nos seus erros os meus erros.   Faço essas coisas que aprendi a fazer numa manhã de sábado. Uma vida de rituais, os hábitos desde há muito demarcados. Serei este, decidi, e até hoje é nesse que sou que tento encontrar algum sossego. Remexo a mochila, topo com esse bilhete e um recorte de notícia. É parte da coluna da Mãe Jussara, uma vidente que faz suas previsões pessoais no jornal local. A carta é muito dura. Mãe Jussara dirige-se a uma mulher, diz coisas que talvez a cliente – posso chamá-la assim? – não quisesse ouvir. Penso que a mística se arrisca demasiadamente, adotando uma crueza que não convém mesmo em jornalismo ou em literatura, terrenos nos quais a verdade se traveste sempre. E então me vem o ...

Ainda sobre o "velhinho da slime"

Escrevi o texto “Velhinho da slime” na manhã dessa terça-feira, 5, portanto antes da postagem no Youtube na qual o Nilson Isaías, 71 anos, nega as acusações que têm sido feitas contra ele e lamenta a onda de boatos da qual se tornou vítima. Segundo ele, trata-se de “fake news”. O vídeo, titulado de “Aviso urgente”, pode ser visto no canal do idoso, que já tem cerca de 2,4 milhões de assinantes em apenas dois dias.   Nem preciso dizer como me senti devastado quando li os comentários ligando Nilson, cujos vídeos eu já havia assistido e dos quais me tornara fã, a suspeitas de pedofilia. Embora conheça casos semelhantes, nos quais homens já idosos se revelaram monstruosos por uma razão ou outra, a mera hipótese de que ele pudesse não ser quem era foi um golpe duríssimo. Suponho que a maior parte das pessoas que já o conheciam também tenha reagido assim, entre a incredulidade e o choque. Afinal, quem era Nilson? O avô bondoso que quase me levou às lágrimas quando finalme...

Velhinho da slime*

Precisamos falar sobre o velhinho da slime, o idoso que estourou na internet com vídeos de até 12 minutos nos quais narra suas desventuras na tentativa de preparar uma massinha que também está na moda por seus efeitos supostamente terapêuticos. O nome do vovô é Nilson Izaías, e é difícil explicar seu sucesso meteórico senão com palavras de enternecimento, como “humanidade”, “beleza” e “fé”. Pelo menos foi assim que me senti enquanto assistia a Nilson lendo os comentários de internautas anotados num caderno de pauta, desses que usava na escola. A câmera mal instalada numa mesa coberta com uma toalha que lembrava a da casa da minha avó. Tudo ali era familiar, dos móveis simples ao tom da prosa do velhinho, que instantaneamente se tornou o avô da internet, ocupando um lugar de afeto genuíno. Aos 2 minutos da postagem “Mais uma tentativa de slime que quase deu certo, meus amigos e amigas”, eu já estava com o coração em pedaços, os olhos marejados, a certeza de que não a bonda...

Caderno de Exercícios

Digo a P que comecei um caderno de exercícios. Nele vou anotando cada pequeno gesto, fragmentos, pedaços avulsos de ideias. Toda sorte de material inservível que normalmente jogaria fora mas que agora retenho e fixo, decanto e guardo.   “Caderno de Exercícios”, anoto mais uma vez, e então lhe entrego um papel a exemplo do que queria dizer, um trecho rabiscado entre uma tarefa e outra. O avesso de um projeto, porque é como se escrevesse ao contrário. P gosta do nome, o que me deixa aliviado. A ela interessa sobretudo a natureza do exercício, não o ato em si, mas a preparação para outra coisa que virá, não a corrida ou o salto ou a escrita, mas o ensaio do que pretendo, seja lá o que for. Então recomenda que passe a registrar nesse caderno não apenas os fantasmas pinçados do baú, mas textos feitos exclusivamente para ele. Sugere que trate o caderno como um Caderno de fato e não uma coisa sem importância. P é sempre assim, metódica e sistemática, um plano de ações pa...