Está aí uma frase que sempre me
intrigou – “Vai desculpando qualquer coisa”.
Minha tia costuma falar quando lhe
faço uma visita, ao fim da qual, depois de comer bolo e tomar café, sapeca com um
misto de vergonha e orgulho: desculpa qualquer coisa, meu filho.
Mas desculpar o quê? O café ou
o bolo? Ou será que a tia se refere a alguma nódoa familiar que ainda
desconheço, um crime muito grave até hoje mantido em segredo por todos e do
qual eu devesse saber algo, mas continuo ignorante?
Não sei.
Cacoete linguístico, o “desculpa
qualquer coisa” tem alcance maior, porém, a ponto de resumir a vida doméstica
de qualquer família cearense: ao acioná-lo, é como se uma pessoa se confessasse
e seus pecados como anfitrião, reais ou imaginários, estivessem expurgados.
É, ao mesmo tempo, um pedido de
desculpas por tudo e por nada, presente e futuro, que retroage aos últimos
fatos, mas também avança no tempo e abarca a série de coisas que ainda podem
acontecer – daí o “vai desculpando qualquer coisa”.
Como um passe-livre pra errar, é
mais utilizado, ironicamente, quando se tem certeza de que nada faltou – o café
estava bom e o bolo, uma maravilha. É um jeito, portanto, de expressar a falsa-modéstia,
já que sugere que, apesar de ter feito o melhor, algo poderia ter sido aprimorado,
embora não se saiba o quê.
Por isso a desculpa não por
isto ou por aquilo, mas por qualquer
coisa.
Qualquer coisa, aí, não é
evidentemente tudo, mas algo que talvez tenha escapado ao domínio, ao controle,
ao planejado, enfim, o contingente, o detalhe.
Cartão de visitas familiar, a
frase arremata qualquer conversa, dos vizinhos ao parente distante. É a senha
de um tipo de hospitalidade desconfiada, típica do cearense, cuja base é um bem-querer
com prazo de validade – fulano é praticamente de casa, mas nunca se sabe. Vai que
resolve sair falando mal.
Melhor não apostar, já que tudo
que o nativo mais teme na vida é se tornar alvo de um falatório, ainda que ele
mesmo seja um praticante contumaz dessa nobre arte cultivada com esmero na terrinha: a fofoca.
Nessa hipótese, quem usa a
frase está na verdade se antecipando às más línguas, essas mesmas que,
depois de uma visita na qual foram bem acolhidas, ainda são
capazes de sair por aí a “maldar” a vida alheia.
Por essas e outras, quando lhes
pedirem pra ir desculpando qualquer coisa, perguntem logo: de que coisa estamos
falando? Do seu marido passando de cueca na porta do quarto? Dos seus filhos
mal-educados? Ou do seu hábito de sempre desconfiar de que, quando dermos as
costas, seremos maledicentes?
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