Digo a P que comecei um caderno
de exercícios. Nele vou anotando cada pequeno gesto, fragmentos, pedaços
avulsos de ideias. Toda sorte de material inservível que normalmente jogaria
fora mas que agora retenho e fixo, decanto e guardo.
“Caderno de Exercícios”, anoto
mais uma vez, e então lhe entrego um papel a exemplo do que queria dizer, um
trecho rabiscado entre uma tarefa e outra. O avesso de um projeto, porque é como
se escrevesse ao contrário.
P gosta do nome, o que me deixa
aliviado. A ela interessa sobretudo a natureza do exercício, não o ato em si,
mas a preparação para outra coisa que virá, não a corrida ou o salto ou a
escrita, mas o ensaio do que pretendo, seja lá o que for.
Então recomenda que passe a
registrar nesse caderno não apenas os fantasmas pinçados do baú, mas textos
feitos exclusivamente para ele. Sugere que trate o caderno como um Caderno de
fato e não uma coisa sem importância.
P é sempre assim, metódica e
sistemática, um plano de ações para cada pequeno acidente, a ciência para ir de
um ponto A até outro ponto B, o mundo em perspectiva. Exagero se disser que não
tem razão.
Quase arrependido de lhe haver
mostrado, falo que o caderno não é nada, não gostaria que fosse, somente o instantâneo deste tempo, um lugar aonde ir sempre que precisar.
Mas P, irredutível, quer o caderno como algo
mais que um livro de visitas de um museu onde todos assinam com nomes falsos. Quer o Caderno de Exercícios como
um livro de ponto ao qual me volto todos os dias, num esforço contínuo de
preenchimento e significação.
Só depois fala que está doente
e precisa se cuidar se quiser chegar até os 30 anos com vida.
Decido, ali mesmo, incluir
nossa conversa no Caderno. Pergunto se posso. P responde que não, mas depois,
como se sentisse que desautorizar seria um modo de negar o que me dissera, pede
que eu faça bom proveito desse diálogo.
Eu digo que esquecerei tudo até
o fim da noite, quando já estiver em casa e do que falamos não restar
quase nada.
P sorri, e seu sorriso é como um dente quebrado sobre o qual passo a língua de tempos em tempos.
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