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Vidência

Ainda no café, folheio uns jornais, leio as resenhas, vasculho os rastros da trajetória de uma personagem que persigo há dias, sem sucesso. Falo com a mãe ao telefone. Ando preocupado com a sua saúde, eu lhe digo, e desligo. A mãe tão parecida comigo em tudo, nos seus erros os meus erros.   Faço essas coisas que aprendi a fazer numa manhã de sábado. Uma vida de rituais, os hábitos desde há muito demarcados. Serei este, decidi, e até hoje é nesse que sou que tento encontrar algum sossego. Remexo a mochila, topo com esse bilhete e um recorte de notícia. É parte da coluna da Mãe Jussara, uma vidente que faz suas previsões pessoais no jornal local. A carta é muito dura. Mãe Jussara dirige-se a uma mulher, diz coisas que talvez a cliente – posso chamá-la assim? – não quisesse ouvir. Penso que a mística se arrisca demasiadamente, adotando uma crueza que não convém mesmo em jornalismo ou em literatura, terrenos nos quais a verdade se traveste sempre. E então me vem o ...

Ainda sobre o "velhinho da slime"

Escrevi o texto “Velhinho da slime” na manhã dessa terça-feira, 5, portanto antes da postagem no Youtube na qual o Nilson Isaías, 71 anos, nega as acusações que têm sido feitas contra ele e lamenta a onda de boatos da qual se tornou vítima. Segundo ele, trata-se de “fake news”. O vídeo, titulado de “Aviso urgente”, pode ser visto no canal do idoso, que já tem cerca de 2,4 milhões de assinantes em apenas dois dias.   Nem preciso dizer como me senti devastado quando li os comentários ligando Nilson, cujos vídeos eu já havia assistido e dos quais me tornara fã, a suspeitas de pedofilia. Embora conheça casos semelhantes, nos quais homens já idosos se revelaram monstruosos por uma razão ou outra, a mera hipótese de que ele pudesse não ser quem era foi um golpe duríssimo. Suponho que a maior parte das pessoas que já o conheciam também tenha reagido assim, entre a incredulidade e o choque. Afinal, quem era Nilson? O avô bondoso que quase me levou às lágrimas quando finalme...

Velhinho da slime*

Precisamos falar sobre o velhinho da slime, o idoso que estourou na internet com vídeos de até 12 minutos nos quais narra suas desventuras na tentativa de preparar uma massinha que também está na moda por seus efeitos supostamente terapêuticos. O nome do vovô é Nilson Izaías, e é difícil explicar seu sucesso meteórico senão com palavras de enternecimento, como “humanidade”, “beleza” e “fé”. Pelo menos foi assim que me senti enquanto assistia a Nilson lendo os comentários de internautas anotados num caderno de pauta, desses que usava na escola. A câmera mal instalada numa mesa coberta com uma toalha que lembrava a da casa da minha avó. Tudo ali era familiar, dos móveis simples ao tom da prosa do velhinho, que instantaneamente se tornou o avô da internet, ocupando um lugar de afeto genuíno. Aos 2 minutos da postagem “Mais uma tentativa de slime que quase deu certo, meus amigos e amigas”, eu já estava com o coração em pedaços, os olhos marejados, a certeza de que não a bonda...

Caderno de Exercícios

Digo a P que comecei um caderno de exercícios. Nele vou anotando cada pequeno gesto, fragmentos, pedaços avulsos de ideias. Toda sorte de material inservível que normalmente jogaria fora mas que agora retenho e fixo, decanto e guardo.   “Caderno de Exercícios”, anoto mais uma vez, e então lhe entrego um papel a exemplo do que queria dizer, um trecho rabiscado entre uma tarefa e outra. O avesso de um projeto, porque é como se escrevesse ao contrário. P gosta do nome, o que me deixa aliviado. A ela interessa sobretudo a natureza do exercício, não o ato em si, mas a preparação para outra coisa que virá, não a corrida ou o salto ou a escrita, mas o ensaio do que pretendo, seja lá o que for. Então recomenda que passe a registrar nesse caderno não apenas os fantasmas pinçados do baú, mas textos feitos exclusivamente para ele. Sugere que trate o caderno como um Caderno de fato e não uma coisa sem importância. P é sempre assim, metódica e sistemática, um plano de ações pa...

Exercício nº 25

Levo horas assim, na preparação do que virá. Tempo gasto tentando descobrir o que ainda não sei, tatibitate. Paro e retomo. Depois ando pelo corredor, em seguida vou ao banheiro e acendo o cigarro. Sopro pela janela a fumaça azulada, que sobe em espirais e se dissipa. Cogito sair, mas aonde iria a esta hora? Não há lugar. É preciso inventar uma geografia, mas isso também leva tempo. É custoso. Então planejo a viagem, Porto ou uma cidade mais distante. Nápoles, quem sabe. Uma passagem. Dois anos fora estudando esse tema sobre o qual venho pensando – qual? É também uma abstração, coisa impalpável, matéria quebradiça. Borrifo água nas plantas, que parecem sempre as mesmas. Não gosto de plantas, prefiro os peixes. Detesto cachorros, tolero gatos. Simpatizo com bichos esquivos. Salguei o macarrão, que agora está condenado. Caprichei no azeite. Achei que teria dificuldade em retomar essa rotina de trabalho após 30 dias durante os quais tentei acreditar que deixar tudo pra trás levaria uma...

Teatro do choro

Há algo de artificioso no choro do Flávio – permito-me agora alguma intimidade com o personagem, não a figura real, mas aquela que aparece no vídeo de curta duração cujas palavras interessam menos que a performance em si. Quando o vi pela primeira vez após dias evitando qualquer assunto que se relacionasse a política, reconheci aqueles gestos. O esgar, as contrações do rosto, o lábio se comprimindo, a progressiva careta em que se converte e, dentro da boca, uma massa invisível macerada insistentemente, um conteúdo indigesto – todos esses sinais indicavam um rito familiar. Era o choro da negação involuntária, e eu o conheço muito bem porque recorri a ele muitas vezes durante esses anos todos em que precisei dizer algo enquanto o meu corpo falava o contrário, cada uma dessas porções ignorando o que a outra fazia e dizia.   Então me pus a escrever, sempre sob a pressão do tempo, convencido de que havia algo ali sobre o qual talvez valesse a pena falar qualquer coisa. E e...

As lágrimas de um homem

Flávio Bolsonaro morde o lábio inferior e desvia o olhar, como se um cachorro houvesse mordiscado a ponta do seu pé e agora ele precisasse lhe dar atenção num momento delicado da performance, o clímax da atuação. Sentado no sofá diante de uma câmera parada, funga novamente. Em seguida volta a mastigar – um chiclete imaginário, a bochecha ou a própria língua? Não se sabe. Quando volta a encarar a lente, a primeira desde a última entrevista à TV Record, está prestes a se debulhar, mal contendo o jorro lacrimal que se anuncia. Afinal, são meses de tensão acumulada, acusações as mais diversas que o punham numa situação desconfortável diante da qual, como a maioria dos homens, só havia algo a fazer: chorar. E foi o que fez. Na terceira tentativa da manhã, finalmente tinha acertado, caprichando nas caras e bocas. Sem carregar no drama, e amparado num elemento que o conectava diretamente com as massas (uma bandeira do Brasil), marejou os olhos gateados de um verde quase transparente...