Há algo de artificioso no choro
do Flávio – permito-me agora alguma intimidade com o personagem, não a figura
real, mas aquela que aparece no vídeo de curta duração cujas palavras
interessam menos que a performance em si.
Quando o vi pela primeira vez
após dias evitando qualquer assunto que se relacionasse a política, reconheci aqueles
gestos. O esgar, as contrações do rosto, o lábio se comprimindo, a progressiva
careta em que se converte e, dentro da boca, uma massa invisível macerada insistentemente,
um conteúdo indigesto – todos esses sinais indicavam um rito familiar.
Era o choro da negação
involuntária, e eu o conheço muito bem porque recorri a ele muitas vezes
durante esses anos todos em que precisei dizer algo enquanto o meu corpo falava
o contrário, cada uma dessas porções ignorando o que a outra fazia e
dizia.
Então me pus a escrever, sempre
sob a pressão do tempo, convencido de que havia algo ali sobre o qual talvez
valesse a pena falar qualquer coisa. E esse algo eram as lágrimas inexistentes
e o olhar perdido num canto para o qual alguns homens se voltam nesses momentos
de desamparo à procura sabe-se lá de quê, da mãe, da tia ou de ambas.
E o que vi em seguida foi esse
rosto contraído que era o meu próprio rosto como se apanhado em flagrante
delito, seja qual for a culpa, real ou imaginária. Era o rosto da vergonha, da
dissimulação e do terror anunciados e agora vertidos num choro que consistia,
antes de mais nada, no antichoro, o engasgo que jamais ganhava forma, o soluço nunca
elaborado e sempre engolido.
O aspecto teatral da dor é o
que chamou a minha atenção. A maneira como o Flávio permite e ao mesmo tempo
rejeita, recalcando essa matéria, que só se deixa entrever na fissura. Está ali,
mas não exposta. Está na brecha, na falha, no avesso do vídeo de internet
compartilhado muitas vezes e parodiado, a peça sobre a qual foram aplicadas camadas
de sonoridade estranha ao som ambiente da locação e que acabou se transformando
ela mesma numa outra coisa, sua qualidade postiça evidenciada tantas vezes a ponto de ganhar uma segunda natureza - a da farsa.
Então o choro também podia ser isso: um engano, um truque de prestidigitação, uma comédia de erros.
Então o choro também podia ser isso: um engano, um truque de prestidigitação, uma comédia de erros.
Desenvolvi a ideia num artigo de 3,3 mil caracteres escrito numa chave cômica mas cujo saldo final é a falta
de graça, não porque a situação em si não seja engraçada, mas porque – por que
mesmo?, eu me pergunto agora. Talvez porque, a meio caminho, eu tenha simplesmente
desistido de rir, impressionado com os muitos elos que aproximavam não a
situação específica do Flávio, subitamente dragado pelo precipício da desgraça
pública, mas a circunstância de que, à mercê desse abismo, ele havia procurado
expor-se numa autoexpiação cuja autenticidade tinha sido reprovada.
Então zoei esse lado canastrão do
personagem, que indisfarçavelmente mobilizou recursos dramáticos na gravação a
fim de parecer mais verdadeiro em seu propósito; mas também me vi retratado
naquele choro falso, o lamento do homem de quem se esperava que dissesse algo
verdadeiro, que reconhecesse os próprios erros e eventualmente pagasse por eles,
mas que havia preferido o caminho do disfarce, da ocultação e do mascaramento.
É possível que essa escolha de
intenção se perca entre mil e uma gracinhas dentro de um texto mais longo, fogos
pálidos de linguagem que explodem e depois afundam como esses rojões sinalizadores
que os náufragos atiram ao mar na esperança de que alguma embarcação os veja
brilhando rapidamente no céu. Por isso escrevi um segundo artigo, este de
agora, de modo a deixar claro, ou pelo menos a ressaltar, as razões pelas quais
resolvi pausar o vídeo do Flávio por cerca de uma hora e olhá-lo com atenção.
Foi o que fiz, olhei-o por
minutos seguidos durante os quais deixei de lado o conteúdo político e me
concentrei no fato de que um homem frequentemente se põe a chorar de maneira que
não deixa dúvidas quanto às suas intenções mal-disfarçadas. Não é sempre assim,
mas acontece.
De vez em quando, porém,
choramos de verdade, não como o Flávio agora, um choro do qual se espreme e não
sai nada. Falo desse choro abundante, que revira dentro e fora, um choro em vão
de escada que purga qualquer vestígio que possa haver de sentimento. Um choro
devastado. Depois dele resta bem pouco, terra seca sobre a qual talvez nada
venha a frutificar tão cedo.
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