Pular para o conteúdo principal

Postagens

Caderno de Exercícios

Digo a P que comecei um caderno de exercícios. Nele vou anotando cada pequeno gesto, fragmentos, pedaços avulsos de ideias. Toda sorte de material inservível que normalmente jogaria fora mas que agora retenho e fixo, decanto e guardo.   “Caderno de Exercícios”, anoto mais uma vez, e então lhe entrego um papel a exemplo do que queria dizer, um trecho rabiscado entre uma tarefa e outra. O avesso de um projeto, porque é como se escrevesse ao contrário. P gosta do nome, o que me deixa aliviado. A ela interessa sobretudo a natureza do exercício, não o ato em si, mas a preparação para outra coisa que virá, não a corrida ou o salto ou a escrita, mas o ensaio do que pretendo, seja lá o que for. Então recomenda que passe a registrar nesse caderno não apenas os fantasmas pinçados do baú, mas textos feitos exclusivamente para ele. Sugere que trate o caderno como um Caderno de fato e não uma coisa sem importância. P é sempre assim, metódica e sistemática, um plano de ações pa...

Exercício nº 25

Levo horas assim, na preparação do que virá. Tempo gasto tentando descobrir o que ainda não sei, tatibitate. Paro e retomo. Depois ando pelo corredor, em seguida vou ao banheiro e acendo o cigarro. Sopro pela janela a fumaça azulada, que sobe em espirais e se dissipa. Cogito sair, mas aonde iria a esta hora? Não há lugar. É preciso inventar uma geografia, mas isso também leva tempo. É custoso. Então planejo a viagem, Porto ou uma cidade mais distante. Nápoles, quem sabe. Uma passagem. Dois anos fora estudando esse tema sobre o qual venho pensando – qual? É também uma abstração, coisa impalpável, matéria quebradiça. Borrifo água nas plantas, que parecem sempre as mesmas. Não gosto de plantas, prefiro os peixes. Detesto cachorros, tolero gatos. Simpatizo com bichos esquivos. Salguei o macarrão, que agora está condenado. Caprichei no azeite. Achei que teria dificuldade em retomar essa rotina de trabalho após 30 dias durante os quais tentei acreditar que deixar tudo pra trás levaria uma...

Teatro do choro

Há algo de artificioso no choro do Flávio – permito-me agora alguma intimidade com o personagem, não a figura real, mas aquela que aparece no vídeo de curta duração cujas palavras interessam menos que a performance em si. Quando o vi pela primeira vez após dias evitando qualquer assunto que se relacionasse a política, reconheci aqueles gestos. O esgar, as contrações do rosto, o lábio se comprimindo, a progressiva careta em que se converte e, dentro da boca, uma massa invisível macerada insistentemente, um conteúdo indigesto – todos esses sinais indicavam um rito familiar. Era o choro da negação involuntária, e eu o conheço muito bem porque recorri a ele muitas vezes durante esses anos todos em que precisei dizer algo enquanto o meu corpo falava o contrário, cada uma dessas porções ignorando o que a outra fazia e dizia.   Então me pus a escrever, sempre sob a pressão do tempo, convencido de que havia algo ali sobre o qual talvez valesse a pena falar qualquer coisa. E e...

As lágrimas de um homem

Flávio Bolsonaro morde o lábio inferior e desvia o olhar, como se um cachorro houvesse mordiscado a ponta do seu pé e agora ele precisasse lhe dar atenção num momento delicado da performance, o clímax da atuação. Sentado no sofá diante de uma câmera parada, funga novamente. Em seguida volta a mastigar – um chiclete imaginário, a bochecha ou a própria língua? Não se sabe. Quando volta a encarar a lente, a primeira desde a última entrevista à TV Record, está prestes a se debulhar, mal contendo o jorro lacrimal que se anuncia. Afinal, são meses de tensão acumulada, acusações as mais diversas que o punham numa situação desconfortável diante da qual, como a maioria dos homens, só havia algo a fazer: chorar. E foi o que fez. Na terceira tentativa da manhã, finalmente tinha acertado, caprichando nas caras e bocas. Sem carregar no drama, e amparado num elemento que o conectava diretamente com as massas (uma bandeira do Brasil), marejou os olhos gateados de um verde quase transparente...

Os trabalhos do mar

Três dias se passaram. Vivemos numa praia distante, a vila de pescadores como se desocupada às pressas. As nuvens de chuva despencando sobre o mar produzem um único tom de azul muito escuro que cria formas avulsas. Imagens náufragas. Nessas formas vejo baleias, anzóis, um corpo de mulher feito num único traço, as linhas de uma história que se enrosca muito tempo atrás. Uma década transcorre e afunda, outra mais se consome e depois vai a pique. Nada no mar permanece o mesmo. É noite. Ando sozinho até o muro branco que separa a pousada da areia. Uma construção pequena, também solitária, administrada com delicadeza por Liduína, uma mulher ainda jovem. Talvez 45 anos. É bonita, um olhar afogueado, o vestido de chita que também está noutros detalhes da decoração, como um motivo, uma repetição que dá pistas de alguma coisa. Venta bastante para esta época do ano, digo. Ontem pensei que o telhado se desprenderia , mas a conversa morre num segundo . De repente a sensação de já ter...

O desafio dos dez anos

Bom, dez anos atrás eu tinha mais cabelo, estava me separando pela quarta vez da minha primeira esposa  – agora pra valer –  e deixando a universidade novamente, formado num curso – jornalismo – cujo aprendizado eu achava que não me serviria de muita coisa porque escrever ficção era  então  o que eu supunha que acabaria fazendo na vida. Salto uma década, e estou sentado numa cadeira de couro rasgada num quarto repleto de livros enquanto minha filha come pizza na sala e assiste a um desenho animado – O irmão do Jorel . Estou casado mais uma vez depois de uma série de pequenos acidentes. Termino um mestrado até abril ou maio, não sei ainda, sobre uma autora italiana cuja identidade ninguém sabe exatamente qual é. Fumo esporadicamente. E tenho muitos cabelos brancos, sobretudo na lateral e na barba, salpicada por fios que, dez anos atrás, eu ainda podia cortar um a um com uma tesourinha de unha caso desejasse aparentar menos idade, o que não funcionava muito bem, ma...

Memória da hora mais quente

Logo descarto o texto que escrevi na varanda, para onde mudei porque o quarto já estava excessivamente quente. É fim de tarde, quase noite, e ao longe ainda posso ver pinceladas de um laranja claro, um rosa muito fraco que aparece como estrias em meio ao azul forte do dia nublado. É imprestável. O texto, não a varanda ou o entardecer. Tem uma qualidade, porém: é a primeira coisa alegre em dias. Talvez por isso não tenha gostado. Uma certa vulgaridade no contentamento, o travo de um pensamento que se satisfaz consigo, a falta de jeito de uma ideia que se esboça tendo como fio condutor um gracejo. Nada disso me interessa, e, no entanto, foi o que passei as últimas horas escrevendo, sentado numa cadeira de ferro, de costas para uma parede na qual há dois quadros, a camisa aberta como um desses turistas que caminham no calçadão queimados de sol e a quem lhe oferecem passeios pelas praias cearenses. É uma de minhas fantasias. Travestir-me de estrangeiro, estar alheio na própria ci...