Três dias se passaram. Vivemos numa
praia distante, a vila de pescadores como se desocupada às pressas. As nuvens
de chuva despencando sobre o mar produzem um único tom de azul muito escuro que
cria formas avulsas. Imagens náufragas. Nessas formas vejo baleias, anzóis, um
corpo de mulher feito num único traço, as linhas de uma história que se enrosca
muito tempo atrás. Uma década transcorre e afunda, outra mais se consome e
depois vai a pique. Nada no mar permanece o mesmo.
É noite. Ando sozinho até o
muro branco que separa a pousada da areia. Uma construção pequena, também
solitária, administrada com delicadeza por Liduína, uma mulher ainda jovem. Talvez
45 anos. É bonita, um olhar afogueado, o vestido de chita que também está
noutros detalhes da decoração, como um motivo, uma repetição que dá pistas de
alguma coisa.
Venta bastante para esta época
do ano, digo. Ontem pensei que o telhado se desprenderia, mas a conversa morre num segundo.
De repente a sensação de já ter
estado ali, já ter dado esses passos, já haver me escorado nesse muro e nele
permanecido por muitos dias até finalmente decifrar a forma escura que se
projetava no céu noturno. Uma onda quebra mais rente, levantando uma nuvem de
maresia que embaça as lentes dos óculos. Preciso retirá-los. Distingo um vulto
ao longe, andando na areia a caminho da falésia, uma imagem perdida entre tantas.
Lembro de minha avó, que
conversava com o além-túmulo. Uma vez me disse que eu herdara o dom, fosse lá
qual fosse, e que ele se manifestaria na hora certa. Nessa noite eu não dormi,
medo de que meu tio Branquinho, morto num acidente de moto, resolvesse
entabular conversar, perguntar se estava namorando, como andavam as notas da
escola e a se mãe ainda vivia com o pai.
Abro uma cerveja. Penso em
escrever. Trouxe comigo um bloco e quatro livros, dois dos quais continuariam
na mochila, intocados, enquanto os outros ficariam ao lado da cama, no criado-mudo,
olhando-me de volta como a interrogar por que afinal estavam ali. Eu não
saberia responder.
Anoto no bloco: “Encontrei uma
palavra que sirva”. Mas a verdade é que as mãos doem e os dedos resistem, gastos
para o mais duro do dia, que é sempre esta tarefa de traduzir, como se falasse
uma língua estranha e o corpo não soubesse de mais nada exceto enrijecer, as
juntas coladas por Durepoxi.
Acendo um cigarro e depois mais
um. Começa a chover fininho, em seguida mais forte. Até a mansidão se converter
em quase tempestade. Corro de volta à praia, piso a areia e encaro o mar. Encrespado,
em soluço, uma massa de água contorcendo-se, o frio incômodo. Imagino um
mergulho em condições tão ruins. É automático. Se vejo o precipício, fantasio a
queda. Se percorro a estrada, fabulo a colisão. Agora, supunha uma caminhada de
poucos passos até a beira d'água, depois a entrada lenta e finalmente mergulhos
que perfurassem as ondas grandes, que se partiam com vigor no meio da noite,
ninguém que testemunhasse, vivo ou morto.
Havia muito não chovia na
região, diria Lidu no dia seguinte, depois de aprontar a mesa do café. Lidu vive
com Maria, uma nativa atarracada que a ajuda a manter o lugar sempre limpo. Estão
aqui há 17 anos, vindas cada uma de um lugar diferente para o qual disseram que
jamais voltariam.
É cedo, entre sete e oito horas. As redes da varanda estão
ensopadas, as roupas que esqueci no varal agora no chão, molhadas. O sol faz as
folhas estalarem de tão verdes. Tive péssimos sonhos na madrugada, o ronco do
mar misturado aos trovões, luzes faiscantes dos relâmpagos iluminando o quarto
de tempos em tempos, o ventilador do teto maquinalmente em conversa com os
outros móveis do vão: uma penteadeira, uma mesa tosca de madeira e um armário
embutido.
Acordo, e logo algo incomoda. Vasculho
braços e pernas à procura. Não acho. Estendo a mão por dentro do calção
tateando volume. Não é.
Então levo os dedos aos
cabelos. Estão cheios de areia e folhas secas, e entre eles adivinho a solidez
dos objetos que o mar prepara: búzios, algas, um esqueleto de peixe deixado
para trás.
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