Bom, dez anos atrás eu tinha
mais cabelo, estava me separando pela quarta vez da minha
primeira esposa – agora pra valer – e deixando a universidade novamente, formado num curso – jornalismo
– cujo aprendizado eu achava que não me serviria de muita coisa porque escrever ficção era então o que eu supunha que acabaria fazendo na vida.
Salto uma década, e estou sentado
numa cadeira de couro rasgada num quarto repleto de livros enquanto minha filha
come pizza na sala e assiste a um desenho animado – O irmão do Jorel. Estou casado mais uma vez depois de uma série de
pequenos acidentes. Termino um mestrado até abril ou maio, não sei ainda, sobre
uma autora italiana cuja identidade ninguém sabe exatamente qual é. Fumo
esporadicamente. E tenho muitos cabelos brancos, sobretudo na lateral e na
barba, salpicada por fios que, dez anos atrás, eu ainda podia cortar um a um
com uma tesourinha de unha caso desejasse aparentar menos idade, o que não
funcionava muito bem, mas me fazia acreditar que era possível deter de alguma
maneira a progressão da velhice.
Hoje é 17 de janeiro, e estou
de férias. Tento remontar aquele janeiro de 2009. Por onde andava, o que fazia naquela
época, se já fumava – imagino que não, porque só levaria a separação a cabo
dentro de três meses, após conhecer minha atual mulher enquanto concluía uma
reportagem em um casario antigo no Centro, ao lado da Faculdade de Direito,
numa área dominada por sebos e lojas de antiguidades que eu frequentada muito
tempo atrás, talvez em 1999 ou 2000, e sobre a qual eu pretendia escrever o que
quer que fosse algum dia.
Mas sobre esse período não
falarei nada, já que o desafio se estende apenas a 2009 e não recua tanto assim
no passado. Além do mais, é aflitivo recuperar o fio daqueles anos tão distantes
de agora, período no qual ainda me ajustava à ideia de que eu havia terminado
os estudos no que se chamava antigamente de segundo grau e agora me sentia
perdido, sem saber se desejava entrar numa faculdade de cara ou se ficaria uns
meses à toa, talvez um semestre, sem nada pra fazer exceto ler e escrever –
acabaria escolhendo a segunda opção, o que me ajudou a entender que eu
precisava seguir um caminho que me levaria para longe do trajeto que eu tinha
esboçado para mim mesmo apenas meses antes, um futuro cheio de números e
fórmulas matemáticas.
Quando li sobre o desafio dos
dez anos, uma dessas bobagens de rede social que surgem de tempos em tempos a
fim de entreter os usuários enquanto o Facebook rouba seus dados e os mistura
num caldeirão digital no qual Zuckerberg prepara suas bruxarias com as quais
fica ainda mais rico, não pensei em levá-lo a sério, cotejando esse “eu” de uma
década atrás e o de agora, e, entre ambos, traçando, ainda que
involuntariamente, algum tipo de comparação e apontando ao final um vencedor.
Primeiro, não entendi por que
se tratava de um desafio – o que se desafiava e a quem, afinal? A prova, se é
que havia uma, consistia apenas em revelar como éramos dez anos mais novos e
agora, atestando que o tempo passa, e nem sempre para melhor? O desafio era esse
exercício de autoexibição narcísica cujo propósito era convencer a si mesmo de que
a vida se revela mais alegre e valorosa à medida que amadurecemos? Sendo assim,
desafiávamos não um ao outro, usuários de redes, mas a nós mesmos e ao tempo,
que, embora tivesse produzido marcas evidentes em nossos corpos, como as fotos não
podiam esconder, havia também garantido que nos tornássemos pessoas, digamos
assim, imodestamente melhores e eventualmente mais bonitas, como provam imagens
de alguns amigos e amigas?
Ou eu estava sendo apenas rabugento,
e o desafio, que ganhara a adesão de anônimos e famosos nas últimas horas, não
passava de uma brincadeira ingênua, uma gincana coletiva muito parecida com as
reuniões familiares em torno dos álbuns de fotografias, ocasião em que relembrávamos,
entre risos de vergonha e espanto, como o tempo havia se processado num piscar
de olhos, e agora éramos todos pessoas
muito diferentes daquelas que usavam roupa cafona ou uma franja ou um par
de sapatos ridiculamente colorido?
Não sei. A despeito dessas
possibilidades, e também do fato de que me pareceu realmente desafiador entender
como o “eu” de 2009 havia resultado neste que sou hoje, sinto que fracassaria se
tentasse levar adiante a brincadeira ao pé da letra e expor as duas pessoas que
fui lado a lado. Qual era a melhor
fotografia, a de antes ou a de agora? E o que essa resposta, qualquer que fosse
ela, significaria para mim?
Não pergunto apenas sobre o meu
caso em especial, mas em relação a qualquer outro. Tendemos a acreditar que a
segunda foto, a imagem atual, feita em 2019 e da qual certamente nos orgulhamos
a ponto de a termos escolhido como o nosso “eu” do presente, supera a de dez
anos atrás por uma larga margem de votos. Ora, parece autoevidente que toda
mudança é intrinsecamente positiva, e o desafio, nesse caso, é apenas a fácil comprovação
de que, no curso de uma década, não somente acumulamos mais experiências,
conhecimento e talvez dinheiro, mas também aprimoramos nossa capacidade de
refletir sobre o que esse acúmulo quer dizer, disso extraindo lições para uma
vida mais agradável.
É precisamente essa noção que
considero falha ou inconsistente: a de que todo avanço seja, per si, bom. Nem sempre é, o que, a bem
da verdade, não é algo que se possa considerar ruim, ainda que esse fluxo do
tempo tenha operado vilezas no corpo e na alma, decantando mais os defeitos do
que as qualidades.
Sobre isso, o desafio talvez se
tornasse mais interessante se incluísse entre suas metas um exame menos
apressado das transformações pelas quais passamos nesse período. Nada muito
cansativo nem custoso do ponto de vista afetivo, mas uma avaliação franca, sem
temor e livre das confirmações fáceis, que considerasse a hipótese real de que
pioramos como ser humano entre 2009 e 2019 – e não falo aqui de calvície ou de
umas gordurinhas a mais na região abdominal. Falo de quem éramos e de quem somos.
Quem sabe esse não fosse o meu
receio quando vi as primeiras fotos de colegas nas redes sociais opondo o “antes”
e o “depois”, mais ou menos como essas montagens feitas em programas de
televisão com participantes que toparam viver uma “transformação radical”, normalmente
limitada a um corte de cabelo, uma muda de roupas novas e um tratamento
dentário.
O medo de que, nessa
brincadeira, como a folhear um álbum antigo na sala de casa cercado por
lembranças de uma família que se desfez com o tempo, eu descobrisse que, sob
certo ângulo, aquela imagem mais velha, um “eu” que ainda não havia ingressado
na casa dos trinta anos, era mais nítida do que esta mais recente e projetava
aquele que eu adoraria ter me tornado, se já não fosse a pessoa que de fato sou.
O que me leva a imaginar que cada um de nós é, ao mesmo tempo, o esboço e a
prova final de nós mesmos, um campo de batalha onde essas duas forças –
expectativa e realidade – se enfrentam numa partida de dominó no fim da tarde
sem qualquer expectativa de que haja um vencedor.
Enquanto escrevo, minha filha
já terminou de comer a fatia de pizza, da qual pediu que eu retirasse todo o
atum. “Pai, ninguém gosta de comer isso”, ela me censurou, franzindo o cenho. Eu
disse que gostava, e imediatamente tentei me lembrar se, cerca de dez anos
atrás, num dia como este 17 de janeiro, em algum momento passara pela minha
cabeça que uma garotinha de quatro anos condenaria minhas escolhas gastronômicas
com base apenas numa restrita experiência com bombons, mingau, chocolate e
algumas frutas.
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