Pular para o conteúdo principal

Postagens

O desafio dos dez anos

Bom, dez anos atrás eu tinha mais cabelo, estava me separando pela quarta vez da minha primeira esposa  – agora pra valer –  e deixando a universidade novamente, formado num curso – jornalismo – cujo aprendizado eu achava que não me serviria de muita coisa porque escrever ficção era  então  o que eu supunha que acabaria fazendo na vida. Salto uma década, e estou sentado numa cadeira de couro rasgada num quarto repleto de livros enquanto minha filha come pizza na sala e assiste a um desenho animado – O irmão do Jorel . Estou casado mais uma vez depois de uma série de pequenos acidentes. Termino um mestrado até abril ou maio, não sei ainda, sobre uma autora italiana cuja identidade ninguém sabe exatamente qual é. Fumo esporadicamente. E tenho muitos cabelos brancos, sobretudo na lateral e na barba, salpicada por fios que, dez anos atrás, eu ainda podia cortar um a um com uma tesourinha de unha caso desejasse aparentar menos idade, o que não funcionava muito bem, ma...

Memória da hora mais quente

Logo descarto o texto que escrevi na varanda, para onde mudei porque o quarto já estava excessivamente quente. É fim de tarde, quase noite, e ao longe ainda posso ver pinceladas de um laranja claro, um rosa muito fraco que aparece como estrias em meio ao azul forte do dia nublado. É imprestável. O texto, não a varanda ou o entardecer. Tem uma qualidade, porém: é a primeira coisa alegre em dias. Talvez por isso não tenha gostado. Uma certa vulgaridade no contentamento, o travo de um pensamento que se satisfaz consigo, a falta de jeito de uma ideia que se esboça tendo como fio condutor um gracejo. Nada disso me interessa, e, no entanto, foi o que passei as últimas horas escrevendo, sentado numa cadeira de ferro, de costas para uma parede na qual há dois quadros, a camisa aberta como um desses turistas que caminham no calçadão queimados de sol e a quem lhe oferecem passeios pelas praias cearenses. É uma de minhas fantasias. Travestir-me de estrangeiro, estar alheio na própria ci...

A história dos móveis

Frequentemente volto a esse texto que escrevi em maio de 2017 . É um relato simples, quase ingênuo, mas que parece carregar uma subtrama, guardar um segredo que, passado todo esse tempo, ainda não sei qual é. Talvez o fato de que os móveis de casa estejam sempre cheios de histórias, que se depositam como poeira e acabam se incorporando aos materiais de que são feitos. Então, quando quebram ou se danificam de alguma maneira, a impressão que temos é de que a própria vida também se partiu, e uma certa desordem se instaura a reboque dos pequenos incidentes. Mas talvez não haja nada nessa história, e o texto, uma crônica que publicaria algum tempo depois no jornal da cidade, seja apenas o que de fato é – mas é precisamente aí que começam as dificuldades.  Decidir o que as coisas são e o que não são de fato. No momento exato em que dissemos “de fato”. Vale para os móveis, os mesmos desde que nos mudamos, à exceção de uma estante de ferro onde mantenho uns poucos livros na sal...

Apocalipse do macho

Um dia, abri a caixa de emails e havia uma mensagem de um escritor que trata de múltiplas crises e paternidade, um texto longo mas didático sobre como esse cara – um jovem branco, menos de 40 anos, pai de uma menina de um ano - se sente incapaz de elaborar ficcionalmente os problemas do dia a dia, entre os quais se encontra o esgotamento de uma certa ideia de masculinidade. Coincidência ou não, dois dias atrás comecei a ler um romance que aborda, por via diferente, o mesmo problema: um bloqueio que se parece com um beco sem saída criativo diante do qual outro homem ainda jovem reconhece bovinamente que não há nada sobre o que escrever exceto sobre a falta de assunto, um tropo recorrente na literatura mas que, tratado dessa maneira e neste contexto, lembra uma forma de escapismo. Como se houvesse um tema – “o” tema, eu diria – sobre o qual esses narradores não conversam, ou deliberadamente resolveram não enxergar, que é a própria crise do homem que homens como eles e eu repres...

Tudo que aprendi jogando videogame

A fase da máquina  Sem razão, lembrei da “fase da máquina” de um jogo antigo, o Kid Chameleon , do console de 16 bits Mega Drive, uma geração à frente do que ganhara do pai no aniversário de 10 anos. Fase da máquina era como chamávamos genericamente uma das etapas mais difíceis desse jogo interminável. Começava assim: uma parede formada por peças metálicas pontiagudas que giravam ameaçadoramente passava a se deslocar da esquerda para a direita, estreitando cada vez mais o espaço do personagem, um garotinho cujo maior poder era transmutar-se, assumindo um avatar entre um número limitado à sua disposição. Então tinha início a fase na qual a gente – eu, no caso – precisava correr, saltar obstáculos, vencer inimigos, partir blocos de concreto com minha cabeça, tudo isso tendo em meu encalço essa parede maciça que ocupava a tela da televisão de cima até em baixo, movendo-se lenta mas inexoravelmente em minha direção. Esse é o motivo pelo qual eu sempre detestei a fase ...

Sem título (trecho)

Dia 2  Mais 24 horas de cão, leio nos jornais. Estou de férias, então passo a maior parte do tempo jogando videogame. Só paro mesmo se a Leila me telefona ou manda mensagem, aí eu guio meu personagem até um lugar mais ermo, uma moita ou o alto de uma montanha, e o escondo lá, fora do alcance das flechas das tribos hostis e das investidas dos dragões. Leila pede que fique com a Clarinha naquele dia, apenas naquele dia. Explica que precisa resolver algo com alguém em algum lugar. Eu assinto, não faço caso. A cidade está parada, você sabe, falo de maneira que Leila não possa jamais confundir uma genuína apreensão com má-vontade ou talvez pretexto para não ficar com nossa filha. Ela bufa de leve do outro lado da linha, eu digo “tá ok, pode vir”, ela se despede com um “tchau” seco. Desde a separação, alternamos dias da semana com a Clarinha – às terças e quintas comigo, às segundas e quartas com ela. Na sexta, com a avó – no domingo, com a minha mãe. Sábado é livre, normalme...

Luz intermitente

Sem querer, acho que alterei horários, e agora tenho preferido escrever à noite, em silêncio, correndo o risco de dormir ou de deixar o computador ligado enquanto jogo por meia hora, e essa meia hora logo se transforma em uma hora e depois em duas. Nesse instante, vejo a manhã chegar pela janela e passo sonolento em direção ao quarto, notando o computador piscando em modo de descanso, mais ou menos como a luz do Hal 9000 minutos antes de morrer. Sempre gostei das manhãs, por uma razão trivial. Estava limpo, fresco, sem o peso do dia sobre as costas. Cada coisa que escrevesse seria, portanto, a primeira coisa do dia, e não o que havia resultado das horas passadas, do cansaço do trabalho e por aí vai. Não era garantia de qualidade, tampouco de novidade, mas um jeito mais natural de fazer aquilo, como tomar o café.   Agora, não sei bem por quê, as coisas ficaram um pouco diferentes, e esse tempo transcorrido entre a manhã e a noite tem sido uma exigência pessoal, quase físic...