A fase da máquina
Sem razão, lembrei da “fase da
máquina” de um jogo antigo, o Kid Chameleon, do console de 16 bits
Mega Drive, uma geração à frente do que ganhara do pai no aniversário de 10
anos. Fase da máquina era como chamávamos genericamente uma das etapas mais
difíceis desse jogo interminável.
Começava assim: uma parede
formada por peças metálicas pontiagudas que giravam ameaçadoramente passava a
se deslocar da esquerda para a direita, estreitando cada vez mais o espaço do
personagem, um garotinho cujo maior poder era transmutar-se, assumindo um
avatar entre um número limitado à sua disposição.
Então tinha início a fase na
qual a gente – eu, no caso – precisava correr, saltar obstáculos, vencer
inimigos, partir blocos de concreto com minha cabeça, tudo isso tendo em meu encalço
essa parede maciça que ocupava a tela da televisão de cima até em baixo, movendo-se
lenta mas inexoravelmente em minha direção.
Esse é o motivo pelo qual eu
sempre detestei a fase da máquina mais do que qualquer outra, como a dos abismos
ou a do fogo: o irrevogável daquela força vindo em meu encontro. Nada que eu
fizesse poderia detê-la, a não ser continuar a ir em frente, e era isso que
fazíamos, tropeçando, adivinhando caminhos e aprendendo com base na tentativa e
erro.
Com o tempo, o desafio
tornava-se moleza, mas esse temor nunca se dissipou totalmente, e mesmo
agora, enquanto escrevo, a sensação de que o espaço se encolhia e as escolhas
do jogador eram quase sempre cruciais me fazem pensar que anos e anos submetido
a esse tipo de experiência estressante acabaram por forjar não um caráter decidido,
mas o contrário: alguém que evita a todo custo encontrar-se numa circunstância diante
da qual não haja outra opção exceto correr adiante.
A “fase da máquina”, uma
constante mesmo nos jogos mais modernos, é o que mais se aproxima da vida no videogame.
Por uma razão principal: está fora da zona de intervenção do controle, ou seja,
não há nada que se possa fazer a seu respeito senão aceitá-la. Realidade que
avança com o tempo, tentar impedi-la só resultará em dor e perda.
Expediente comum, ela acabava
se repetindo nos títulos de muitos consoles das gerações mais antigas, como
variações de um mesmo tema. Em todas, o objetivo era o mesmo: colocar à prova
não só a perícia, mas as habilidades decisórias de quem jogava, além de sua capacidade
de manipular enquanto, às suas costas, o inominável se aproximava, implacável
como um fenômeno da natureza.
Não havia estratégia contra a
máquina; nenhuma arma lhe fazia frente. Tampouco sua presença no jogo justificava-se
do ponto de vista da narrativa. Era um recurso extremo ao qual o criador da
história recorria. Sua figura representava o desafio intransponível, o castelo
inexpugnável, o chefão indestrutível. A máquina, resfolegando como uma
locomotiva sem carga ou zunindo como o monólito do filme 2001 – uma odisseia no espaço.
A velocidade da parede maquinal nessas fases era muito baixa,
quase parando, como a alimentar a ilusão de que era possível fazer muitas coisas
antes de optar pela única coisa realmente sensata e possível naquelas
circunstâncias: esquivar-se, ir em frente, escapar, estar o mais longe possível.
A lentidão da parede era, em si, um estratagema enganoso, de modo a dissimular
sua real intenção. Assim como o adocicado do vinho ou o sorriso da menina da 5ª
série minutos antes de partir nosso coração em 18 pedaços, a aparência da
máquina se constituía dessa matéria cuja docilidade disfarçava uma natureza monstruosa. Embora a ameaça da máquina pretendesse talvez passar como coisa banal, ela era
na verdade uma extravagância, uma aberração que impunha medo a quem quer que
tentasse encará-la ou dela se aproximasse, matando de imediato, sem gradação de
vitalidade ou segunda chance.
A máquina, não havia dúvida, queria
destruir-nos, e seu método era o mesmo dos vilões de filme de terror dos anos
1980: devagar e sempre. O mais famoso, Jason, da franquia Sexta-feira, 13, costumava
ter muita paciência quando no exercício daquilo que mais gostava de fazer: trucidar jovens seminus em acampamentos da escola. Nessas horas, ele andava em
direção às vítimas, escolhidas ao acaso ou nunca escolhidas, não recordo.
Caminhava sem pressa, como se tivesse o dia inteiro, antes de aplicar seus golpes
fatais.
Jason é como a fase da máquina:
metódico e determinado, empareda adolescentes na floresta ou na rua, que
desesperam e correm, tropeçando em raízes elevadas ou se desequilibrando no
desnível da calçada, ocasião em que a morte, com machado em punho, finalmente
os alcança.
Enquanto jogava, nada disso me
ocorria, apenas que era preciso ir o mais depressa possível na direção
contrária à da máquina, sem tempo sequer de olhar pra trás, saltando muros e
escalando paredes ainda mais rapidamente do que costumava fazer quando acossado
por um inimigo mais forte e veloz. De certo modo, a máquina nos preparava para
os terrores da vida real, Jason entre eles, infundindo em cada um de nós um
sentido de urgência e também a certeza de que havia ameaças em face das quais
nenhuma ferramenta ou atributo eram suficientemente potentes. A máquina era
como uma mãe muito malvada que açoitasse o próprio filho muitas vezes ao dia,
ao fim do qual virava-se e dizia que era tudo para o seu próprio bem.
Sem nome e sem se deixar
enxergar por completo, somente uma fração do corpo, ela estava para o jogo como
o tubarão para o filme do Spielberg ou o alien no primeiro longa de Ridley
Scott. A sugestão aterrorizava mais que o gesto concreto, e sua
sombra, como as criaturas do cinema, bastava para causar espanto.
Disse há pouco que ter jogado
tantas vezes a fase da máquina quando criança produziu em mim uma espécie de antídoto
contra situações-limite. Talvez exagere, talvez tenha razão. Sem querer
extrapolar o potencial de influência daquele videogame sobre um menino, a noção
de risco iminente, se vivida de forma repetitiva, constitui uma marca que
singulariza, acho. Na escola, em casa, na rua: o tempo todo eu estava em fuga.
Como quase todos da minha idade naquela época, eu fugia de múltiplas ameaças –
os garotos mais fortes, os siderados, os raptores de crianças, os
fantasmas, os palhaços, os velhos e, por fim, as meninas por quem éramos
apaixonados.
Embora isto não seja um
episódio do He-Man, que sempre terminava
repassando os lances mais importantes e daí extraía uma lição de moral caso
alguém não tivesse captado a mensagem, o fato é que a “fase da máquina” tinha também
um aprendizado valioso a oferecer a quem a vivenciasse com atenção.
Era curto e grosso, como a
máquina em si: às vezes a única coisa honrosa a se fazer diante do perigo é
fugir, mas às vezes fugir não é uma alternativa.
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