Dia 2
Mais 24 horas de cão, leio nos
jornais. Estou de férias, então passo a maior parte do tempo jogando videogame.
Só paro mesmo se a Leila me telefona ou manda mensagem, aí eu guio meu
personagem até um lugar mais ermo, uma moita ou o alto de uma montanha, e o
escondo lá, fora do alcance das flechas das tribos hostis e das investidas dos
dragões.
Leila pede que fique com a
Clarinha naquele dia, apenas naquele dia. Explica que precisa resolver algo com
alguém em algum lugar. Eu assinto, não faço caso. A cidade está parada, você
sabe, falo de maneira que Leila não possa jamais confundir uma genuína
apreensão com má-vontade ou talvez pretexto para não ficar com nossa filha. Ela
bufa de leve do outro lado da linha, eu digo “tá ok, pode vir”, ela se despede
com um “tchau” seco.
Desde a separação, alternamos
dias da semana com a Clarinha – às terças e quintas comigo, às segundas e
quartas com ela. Na sexta, com a avó – no domingo, com a minha mãe. Sábado é
livre, normalmente é um salve-se quem puder.
Era quarta, dia dela. Eu havia
me programado para submergir na terra selvagem do jogo e lá permanecer por
cinco horas ou mais, quando as missões em cavernas escuras ou descampados
habitados unicamente por trolls e ursos gigantes me fariam esquecer tudo: o pé
na bunda, o risco de demissão, a doença do pai e o apocalipse urbano que tinha
se abatido sobre a cidade havia três dias e não dava mostras de que iria parar tão
cedo.
Começara domingo, com uma série
de explosões em ônibus na madrugada, e se espalhara pelas horas seguintes,
estendendo-se a outras cidades rapidamente. Pelo WhatsApp, o pai mandava
mensagens sobre um toque de recolher, um vídeo de posto de gasolina em chamas,
torres de telefonia celular avariadas e o pilar danificado de um viaduto que
fica a dez minutos do meu apartamento e sobre o qual costumo trafegar a caminho
da universidade – com a explosão, ele havia entortado, ganhando essa aparência
de cogumelo extravagante que havia nascido ali por acaso.
Eu tinha uma ou duas horas pela
frente antes de Clarinha chegar. Reencontrei minha personagem, uma guerreira de
cabelo ruivo perita em arco e flecha mas muito competente também com a espada.
Estava entediada atrás de uma rocha, aliviando o peso do corpo ora concentrando-o
numa perna, ora noutra, enquanto, a poucos metros dali, uma dupla de orcs
parecia perdida num cruzamento de estradas que levavam a dois importantes
reinos: um mergulhado em gelo e o outro fincado numa densa floresta. Os orcs
eram do tipo “batedor de carteiras”, a pior espécie de criatura que existe
neste mundo porque se fingiam desinteressados segundos antes de atacarem um
desavisado.
Fulminei-os com dois disparos
precisos à média distância – um na cabeça e outro no tronco. Eu ainda não estava
totalmente refeita do susto que havia sido encarar um troll das neves cerca de
meia hora atrás, quando mal acabara de estripar um grupo de três assaltantes
que viviam numa casa isolada nas proximidades de uma ponte e que me deram um
trabalho gigantesco porque estavam dois níveis acima do meu, portanto precisei
carrear uma quantidade infindável de recursos, entre poções mágicas de recuperação
rápida de vitalidade e comida.
O dia tinha sido produtivo, então
me permiti andar até um ponto mais íngreme da planície, de onde admirei aquela geografia.
Era uma das coisas que mais gostava de fazer naquele jogo. Parar e olhar. A
música suave, uma flauta que inspirava mornidão, convidava a um descanso diante
da paisagem amena: pinheiros, um riacho correndo, aldeões arando a terra, a
cadeia de montanhas ao fundo recortadas contra o céu azul-turquesa, alguns
picos nevados e por aí vai. Eu poderia comprar uma daquelas casas da vila e me
estabelecer ali, abandonar a vida de barbárie como alguns amigos tinham feito
com seus avatares não havia tanto tempo.
Parecia uma ideia razoável. Fixar
residência, quem sabe casar e ter filhos. Podia aprender
truques numa escola de magia, coisa com que certamente as crianças ficariam
entusiasmadas quando começassem a crescer e a se interessar por seus futuros de mago, guerreiro ou assaltante furtivo.
O telefone vibra sobre o tampo
da mesinha ao lado da cama. É Leila. “Estamos na porta. Desça”, ela escreve. Largo
a personagem num campo aberto, agora exposta a qualquer um com um machado na
mão. Corro afobado até a porta. Clarinha já estava fora do carro à minha
espera. Tive a impressão de que crescera dez centímetros de um dia pra outro. Pulou
em cima de mim.
Minha ex-mulher viria buscá-la
ao final do dia também da mesma maneira cronometrada como tinha feito agora, quase
como se participasse de um desses testes de programa de auditório nos quais famílias
precisam se submeter a uma bateria de provações antes de faturarem o prêmio: um
caminhão abarrotado de móveis, eletrodomésticos, sofá e uma tevê que ocupa a
extensão da parede verde na qual penduramos uns quadros retrô.
“Obedeça seu pai”, ordenou Leila,
num único comando que, para ela, sintetizava tudo que havia para ser dito naquele
momento. Em seguida acena e dá a partida no carro. “Até o sábado”, avisa antes
de sair.
Na rua, tenho a sensação de que
a cidade fora esvaziada a pedido do Governo para realização de uma manobra
militar que mobilizaria contingentes do Exército, forças especiais, polícias e a
inteligência no enfrentamento contra uma invasão de alienígenas que finalmente tinham
se revelado depois de se infiltrarem no comando do aparato estatal e passarem a
controlar as mentes de altos oficiais, mas também de professores e parte dos
alunos. Clarinha estreita os olhos.
“Isso não é verdade”, conclui, com um meio
sorriso que a fazia lembrar sempre a mãe quando desbaratava facilmente alguma
desculpa débil que eu lhe dava sobre as horas que ficava fora de casa. Encerrei minha narrativa apocalíptica, e fomos
pra casa terminar a missão de Valquíria – era o nome da arqueira ruiva e
mortífera por quem eu me sentia levemente apaixonado nos dias em que a barra
pesava mais.
Comentários