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Postagens

Tudo que aprendi jogando videogame

A fase da máquina  Sem razão, lembrei da “fase da máquina” de um jogo antigo, o Kid Chameleon , do console de 16 bits Mega Drive, uma geração à frente do que ganhara do pai no aniversário de 10 anos. Fase da máquina era como chamávamos genericamente uma das etapas mais difíceis desse jogo interminável. Começava assim: uma parede formada por peças metálicas pontiagudas que giravam ameaçadoramente passava a se deslocar da esquerda para a direita, estreitando cada vez mais o espaço do personagem, um garotinho cujo maior poder era transmutar-se, assumindo um avatar entre um número limitado à sua disposição. Então tinha início a fase na qual a gente – eu, no caso – precisava correr, saltar obstáculos, vencer inimigos, partir blocos de concreto com minha cabeça, tudo isso tendo em meu encalço essa parede maciça que ocupava a tela da televisão de cima até em baixo, movendo-se lenta mas inexoravelmente em minha direção. Esse é o motivo pelo qual eu sempre detestei a fase ...

Sem título (trecho)

Dia 2  Mais 24 horas de cão, leio nos jornais. Estou de férias, então passo a maior parte do tempo jogando videogame. Só paro mesmo se a Leila me telefona ou manda mensagem, aí eu guio meu personagem até um lugar mais ermo, uma moita ou o alto de uma montanha, e o escondo lá, fora do alcance das flechas das tribos hostis e das investidas dos dragões. Leila pede que fique com a Clarinha naquele dia, apenas naquele dia. Explica que precisa resolver algo com alguém em algum lugar. Eu assinto, não faço caso. A cidade está parada, você sabe, falo de maneira que Leila não possa jamais confundir uma genuína apreensão com má-vontade ou talvez pretexto para não ficar com nossa filha. Ela bufa de leve do outro lado da linha, eu digo “tá ok, pode vir”, ela se despede com um “tchau” seco. Desde a separação, alternamos dias da semana com a Clarinha – às terças e quintas comigo, às segundas e quartas com ela. Na sexta, com a avó – no domingo, com a minha mãe. Sábado é livre, normalme...

Luz intermitente

Sem querer, acho que alterei horários, e agora tenho preferido escrever à noite, em silêncio, correndo o risco de dormir ou de deixar o computador ligado enquanto jogo por meia hora, e essa meia hora logo se transforma em uma hora e depois em duas. Nesse instante, vejo a manhã chegar pela janela e passo sonolento em direção ao quarto, notando o computador piscando em modo de descanso, mais ou menos como a luz do Hal 9000 minutos antes de morrer. Sempre gostei das manhãs, por uma razão trivial. Estava limpo, fresco, sem o peso do dia sobre as costas. Cada coisa que escrevesse seria, portanto, a primeira coisa do dia, e não o que havia resultado das horas passadas, do cansaço do trabalho e por aí vai. Não era garantia de qualidade, tampouco de novidade, mas um jeito mais natural de fazer aquilo, como tomar o café.   Agora, não sei bem por quê, as coisas ficaram um pouco diferentes, e esse tempo transcorrido entre a manhã e a noite tem sido uma exigência pessoal, quase físic...

Livro secreto

Há dias procuro um livro específico que não sei qual é, mas a bagunça das estantes não tem ajudado. Reviro as pilhas, inspeciono as lombadas, checo atrás das prateleiras abarrotadas e reabro portas de armários há muito fechadas. Nada. Não está lá. É um livro de capa fina, dessas que dobram e amassam facilmente e nas quais há uma infinidade de marcas de dedos de todas as pessoas que manusearam o livro. Se o folheamos, de dentro desprende-se um cheiro antigo, odor de mãos e pele e objetos esquecidos, manchas invisíveis que foram se acumulando – uma de café, outra de uma substância que não consigo identificar, mas que associo a manteiga ou a algum produto gorduroso. Não recordo a história. Na verdade, não mantive um fiapo de nada do enredo nem dos personagens, apenas a vaga noção de que deveria encontrá-lo em algum ponto do quarto, entre as torres de pequenos volumes nunca lidos que fui juntando e os que efetivamente li. Todavia, não é fácil achar coisas esquecidas, e esse livro, pelo q...

As cartas do crime

Ontem li novo bilhete, este mais elaborado, com data e cumprimento inicial aos moradores da comunidade, um preâmbulo no qual o autor oculto alerta para as condições de vida da população carcerária e depois segue com recomendações específicas: não abrir o comércio, não vender, não autorizar a venda, não despachar sequer um bombom, frisa. As missivas criminosas se sofisticaram. É coisa a se pesquisar. Antes eram “salves” rudimentares nos quais os erros de grafia eram visíveis e as ideias, ralas, não se concatenavam, como se por trás da ilicitude não houvesse nada senão o desejo de praticá-la, um ato destituído de significado e domínio. Agora é diferente, e cada ataque dos mais de 200 que se praticaram até aqui contra alvos públicos e privados são antecedidos por algum tipo de aviso e situados num contexto social no qual a crise do sistema carcerário desempenha papel fundamental. As cartas do crime viraram pequenos artigos. Como essa que li impressa e também no celular envia...

Uma cortina

Hoje experimentei escurecer a sala, pus na janela uma cortina que bloqueia boa parte da luminosidade. Quando terminei, me afastei alguns metros, como um pintor que toma distância da parede a ver se ficaram zonas que precisem de retoques. Gosto da meia-luz, e a impressão que tenho agora é de que a sala está de acordo com um clima que tento preservar no dia a dia. Um tipo de ambiente no qual posso sentar a um canto e escrever ou conversar. Há brechas, porém. Aqui e ali, as falhas da cortina se evidenciam, e uma luz coada atravessa o material sintético, de cor entre branco e creme, projetando claridade no cômodo. É pouco, mas suficiente para saber que está lá, percorrendo vagarosa a superfície do anteparo que vaza, como quase tudo. Alterno luz intensa e sombra. De manhã, por exemplo, escrevo banhado pela janela aberta, o sol batendo-se contra o branco da parede. São as primeiras horas do dia, e nelas normalmente estou disposto, quase bem-humorado. O passar do dia vai...

Nas alturas

É sábado, e lá fora há calmaria em meio a caos. Andei por alguns quarteirões, uma caminhada sob sol que levou meia hora sem destino aparente ao fim da qual comecei a achar que não há distinção entre fim e começo, céu e inferno, pesadelo e realidade. Nos bares havia gente almoçando e bebendo e por todo canto uma conversa quase sussurrada sobre o estado geral das coisas. As coisas, falam assim, sem se referir exatamente a coisa alguma, estão prestes a colapsar, as coisas estão se movendo com rapidez e ninguém percebe porque estamos dentro delas. Uma conversa imaginária, claro, ninguém falou nada além de pedaços triviais que fui pescando enquanto suava pra vencer os poucos metros entre um ponto A e um B. Poucos carros na rua, lojas abertas, mas quase vazias. Acordei tarde, então ainda tenho o corpo dormente que aos poucos vai ganhando o ritmo do dia, cujo limite não sei qual é. De repente, tenho essa impressão que às vezes aparece de que a realidade mais imediata...