Ontem li
novo bilhete, este mais elaborado, com data e cumprimento inicial aos moradores
da comunidade, um preâmbulo no qual o autor oculto alerta para as condições de
vida da população carcerária e depois segue com recomendações específicas: não
abrir o comércio, não vender, não autorizar a venda, não despachar sequer um
bombom, frisa.
As missivas criminosas se
sofisticaram. É coisa a se pesquisar. Antes eram “salves” rudimentares nos
quais os erros de grafia eram visíveis e as ideias, ralas, não se concatenavam,
como se por trás da ilicitude não houvesse nada senão o desejo de praticá-la,
um ato destituído de significado e domínio.
Agora é diferente, e cada
ataque dos mais de 200 que se praticaram até aqui contra alvos públicos e
privados são antecedidos por algum tipo de aviso e situados num contexto social
no qual a crise do sistema carcerário desempenha papel fundamental. As cartas
do crime viraram pequenos artigos.
Como essa que li impressa e
também no celular enviada por um primo que mora na periferia e desde ontem vem
me pedindo insistentemente pra mostrá-la em contraposição ao discurso
oficial de que as coisas estão sob controle.
Não estão, diz ele, e novamente
exige que eu observe os detalhes da carta. Não parece coisa de amador, gente
sem instrução, ladrãozinho sem eira nem beira. As frases se conectam, têm
início, meio e fim, e os parágrafos estabelecem entre si uma relação de causa e
consequência, cada um deles como o desdobramento natural do anterior, chegando
a desfecho lógico do qual se pode discordar, evidentemente, mas não deduzir que
não têm pé nem cabeça.
Aonde pretende chegar?, lanço a pergunta. Ele então responde que o poder das facções, antes restrito e mais superficial, agora é capilarizado e orgânico, sendo mostra disso o grau de desenvolvimento da escrita e o acúmulo que os grupos foram obtendo ao longo dos últimos anos.
Faz sentido, respondo, mas essa leitura se ampara unicamente na competência linguística dos bandidos? Ele ri, e fala que se trata de uma suspeita, apenas.
Eu concordo e digo que é normal – dentro de um limite para o que se considera normal, claro – supor que o crime também tenha evoluído, afinal a oferta de tecnologia democratiza o conhecimento para todos, inclusive para quem pretenda tirar proveito dessa maior difusão a fim de cometer atrocidades, como o incêndio de uma creche ou o ataque a três caminhões, dois viadutos e por aí vai.
Aonde pretende chegar?, lanço a pergunta. Ele então responde que o poder das facções, antes restrito e mais superficial, agora é capilarizado e orgânico, sendo mostra disso o grau de desenvolvimento da escrita e o acúmulo que os grupos foram obtendo ao longo dos últimos anos.
Faz sentido, respondo, mas essa leitura se ampara unicamente na competência linguística dos bandidos? Ele ri, e fala que se trata de uma suspeita, apenas.
Eu concordo e digo que é normal – dentro de um limite para o que se considera normal, claro – supor que o crime também tenha evoluído, afinal a oferta de tecnologia democratiza o conhecimento para todos, inclusive para quem pretenda tirar proveito dessa maior difusão a fim de cometer atrocidades, como o incêndio de uma creche ou o ataque a três caminhões, dois viadutos e por aí vai.
Mas fico com essa ideia na
cabeça: o fato de que, num momento como este, as facções sirvam-se de cartas,
um gênero tão pouco em voga. Endereçados às comunidades, os bilhetes depois são
retransmitidos via aplicativo de conversa, mas sempre acabam ganhando uma
versão impressa, que é deixada na cena do crime como aviso às autoridades de
que as organizações têm uma linha de ação lastreada numa formulação teórica –
há uma crise do sistema agravada pelas más condições de encarceramento.
Obviamente, como diagnóstico,
as cartas são precárias, tendendo a enxergar apenas um aspecto do problema e
ignorando os prejuízos que a paralisação de pequenos comércios, como esses do
bairro onde meu primo mora, causa aos moradores a quem eles se dirigem.
Todavia, não deixa de haver
curiosidade no emprego da ferramenta escrita, quase
sempre muito íntima, de modo a se aproximar das comunidades, expediente que nem
mesmo o poder público costuma adotar, preferindo os comunicados da autoridade
pública por meio das redes sociais, sobretudo os de vídeos, que têm maior
alcance.
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