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Luz intermitente

Sem querer, acho que alterei horários, e agora tenho preferido escrever à noite, em silêncio, correndo o risco de dormir ou de deixar o computador ligado enquanto jogo por meia hora, e essa meia hora logo se transforma em uma hora e depois em duas. Nesse instante, vejo a manhã chegar pela janela e passo sonolento em direção ao quarto, notando o computador piscando em modo de descanso, mais ou menos como a luz do Hal 9000 minutos antes de morrer. Sempre gostei das manhãs, por uma razão trivial. Estava limpo, fresco, sem o peso do dia sobre as costas. Cada coisa que escrevesse seria, portanto, a primeira coisa do dia, e não o que havia resultado das horas passadas, do cansaço do trabalho e por aí vai. Não era garantia de qualidade, tampouco de novidade, mas um jeito mais natural de fazer aquilo, como tomar o café.   Agora, não sei bem por quê, as coisas ficaram um pouco diferentes, e esse tempo transcorrido entre a manhã e a noite tem sido uma exigência pessoal, quase físic...

Livro secreto

Há dias procuro um livro específico que não sei qual é, mas a bagunça das estantes não tem ajudado. Reviro as pilhas, inspeciono as lombadas, checo atrás das prateleiras abarrotadas e reabro portas de armários há muito fechadas. Nada. Não está lá. É um livro de capa fina, dessas que dobram e amassam facilmente e nas quais há uma infinidade de marcas de dedos de todas as pessoas que manusearam o livro. Se o folheamos, de dentro desprende-se um cheiro antigo, odor de mãos e pele e objetos esquecidos, manchas invisíveis que foram se acumulando – uma de café, outra de uma substância que não consigo identificar, mas que associo a manteiga ou a algum produto gorduroso. Não recordo a história. Na verdade, não mantive um fiapo de nada do enredo nem dos personagens, apenas a vaga noção de que deveria encontrá-lo em algum ponto do quarto, entre as torres de pequenos volumes nunca lidos que fui juntando e os que efetivamente li. Todavia, não é fácil achar coisas esquecidas, e esse livro, pelo q...

As cartas do crime

Ontem li novo bilhete, este mais elaborado, com data e cumprimento inicial aos moradores da comunidade, um preâmbulo no qual o autor oculto alerta para as condições de vida da população carcerária e depois segue com recomendações específicas: não abrir o comércio, não vender, não autorizar a venda, não despachar sequer um bombom, frisa. As missivas criminosas se sofisticaram. É coisa a se pesquisar. Antes eram “salves” rudimentares nos quais os erros de grafia eram visíveis e as ideias, ralas, não se concatenavam, como se por trás da ilicitude não houvesse nada senão o desejo de praticá-la, um ato destituído de significado e domínio. Agora é diferente, e cada ataque dos mais de 200 que se praticaram até aqui contra alvos públicos e privados são antecedidos por algum tipo de aviso e situados num contexto social no qual a crise do sistema carcerário desempenha papel fundamental. As cartas do crime viraram pequenos artigos. Como essa que li impressa e também no celular envia...

Uma cortina

Hoje experimentei escurecer a sala, pus na janela uma cortina que bloqueia boa parte da luminosidade. Quando terminei, me afastei alguns metros, como um pintor que toma distância da parede a ver se ficaram zonas que precisem de retoques. Gosto da meia-luz, e a impressão que tenho agora é de que a sala está de acordo com um clima que tento preservar no dia a dia. Um tipo de ambiente no qual posso sentar a um canto e escrever ou conversar. Há brechas, porém. Aqui e ali, as falhas da cortina se evidenciam, e uma luz coada atravessa o material sintético, de cor entre branco e creme, projetando claridade no cômodo. É pouco, mas suficiente para saber que está lá, percorrendo vagarosa a superfície do anteparo que vaza, como quase tudo. Alterno luz intensa e sombra. De manhã, por exemplo, escrevo banhado pela janela aberta, o sol batendo-se contra o branco da parede. São as primeiras horas do dia, e nelas normalmente estou disposto, quase bem-humorado. O passar do dia vai...

Nas alturas

É sábado, e lá fora há calmaria em meio a caos. Andei por alguns quarteirões, uma caminhada sob sol que levou meia hora sem destino aparente ao fim da qual comecei a achar que não há distinção entre fim e começo, céu e inferno, pesadelo e realidade. Nos bares havia gente almoçando e bebendo e por todo canto uma conversa quase sussurrada sobre o estado geral das coisas. As coisas, falam assim, sem se referir exatamente a coisa alguma, estão prestes a colapsar, as coisas estão se movendo com rapidez e ninguém percebe porque estamos dentro delas. Uma conversa imaginária, claro, ninguém falou nada além de pedaços triviais que fui pescando enquanto suava pra vencer os poucos metros entre um ponto A e um B. Poucos carros na rua, lojas abertas, mas quase vazias. Acordei tarde, então ainda tenho o corpo dormente que aos poucos vai ganhando o ritmo do dia, cujo limite não sei qual é. De repente, tenho essa impressão que às vezes aparece de que a realidade mais imediata...

Viagem

Pensei num balanço, coisa que escreveria a fim de retomar o fio do ano perdido entre casas descosturadas e botões desfeitos.  Desisti ante o esforço. Caberia uma rememoração custosa, coisa que não me vejo capaz de fazer agora, talvez nem tão cedo. O que não impede de ir sozinho amiudando uma conversa comigo, algo próximo dessa ruminação bovina que demarca um cotidiano com vagar. Fico andando, somente. Um arrastado de chinela de dedo pelo corredor como se rondasse a porta entreaberta atrás da qual se esconde - o  quê? Eu não sei. Depois descalço, as plantas dos pés tocando o frio da cerâmica, e em seguida tudo se ajustando numa temperatura só. É ano sem medida este que se encerra. Tempo dilatado no qual cabe muito e do qual muito escapa pelas bordas.  Matéria inapreensível, tão escorregadia que não arrisco deter sob o risco de não haver nada ao final para segurar.  Quem sabe volte antes da meia-noite do dia 31 de dezembro deste 2018 a dizer qualqu...

Natal sem partido

Depois das brigas e discussões no WhatsApp. Depois dos laços desfeitos pelas urnas. Depois de xingar primos e cunhados e chamá-los de coxinhas ou mortadelas. Depois de mandar a tia às favas. Depois de renegar os vínculos sanguíneos e rasgar fotos de catecismo em que aparecíamos ao lado daquele tio que de repente se revelara um preconceituoso de carteirinha. Depois dessa carnificina política que durou dois turnos eleitorais e ganha sobrevida a cada nova liminar de ministro mandando soltar o Lula, chegou a hora de reencontrar a família na ceia do Natal. Bom, eu não sei como me comportar na primeira celebração do tipo após as eleições. Falo com honestidade. Fã da data, costumo fazer um rodízio de ceias, passando por cada casa de parente coletando um dízimo em fartas Tupperware que depois empilho na geladeira e das quais me sirvo até o ano seguinte sem precisar comprar absolutamente um farelo na mercearia. Neste ano será assim? Não sei. Por mais devotado à solidariedade e...