Pular para o conteúdo principal

Natal sem partido


Depois das brigas e discussões no WhatsApp. Depois dos laços desfeitos pelas urnas. Depois de xingar primos e cunhados e chamá-los de coxinhas ou mortadelas. Depois de mandar a tia às favas. Depois de renegar os vínculos sanguíneos e rasgar fotos de catecismo em que aparecíamos ao lado daquele tio que de repente se revelara um preconceituoso de carteirinha.

Depois dessa carnificina política que durou dois turnos eleitorais e ganha sobrevida a cada nova liminar de ministro mandando soltar o Lula, chegou a hora de reencontrar a família na ceia do Natal.

Bom, eu não sei como me comportar na primeira celebração do tipo após as eleições. Falo com honestidade. Fã da data, costumo fazer um rodízio de ceias, passando por cada casa de parente coletando um dízimo em fartas Tupperware que depois empilho na geladeira e das quais me sirvo até o ano seguinte sem precisar comprar absolutamente um farelo na mercearia.

Neste ano será assim? Não sei.

Por mais devotado à solidariedade e aos bons sentimentos, o dia guarda lá seus rancores por natureza. Por exemplo. Lembro de um Natal em que comecei um discurso de agradecimento aos parentes e terminei aos prantos, quase culpando irmãos por falhas que eram minhas e no final pedindo desculpas por tudo que havia feito de mau naquele ano e em todos os anteriores, numa catarse rodrigueana enquanto, no centro da mesa como um totem extraterreno, o peru esfriava.

Isso foi o quê? Em 2015 ou 2016? Não sei direito. O fato é que a essa predisposição à refrega familiar que é desde sempre uma característica do Natal, soma-se neste ano o elemento político.

Ora, ainda estão frescas na memória as batalhas grupais para que os entes queridos simplesmente se sentem à mesa e comecem a dividir o creme de frango ou o arroz com passas como se não tivesse havido 2018 e sua enxurrada de mensagens compartilhadas com mamadeiras eróticas e kits gay.

Dois mil e dezoito, o ano que foi longe demais, continua a dividir os brasileiros em falanges até o fim. Basta reparar nas diplomações dos candidatos eleitos para Assembleias, Câmara e Senado: um show de sopapos trocados. Pessoas que haviam estado de lados opostos agora vão às vias de fato.

É isso que espero das ceias de Natal. Cerimônias cujo início solene logo cede às animosidades acumuladas durante a campanha e deságua num telecatch vergonhoso do qual saímos todos amarfanhados e com a certeza de que o Brasil é a turma da quinta série C no recreio jogando pelada com um tubo de xampu sem a presença do inspetor ou vigia ou outro adulto que faça as vezes de autoridade suprema.

Posso estar errado, claro, e no dia 24 de dezembro todos se cumprimentem e troquem presentes, num ato de exemplar congraçamento que deixa pra trás esse rastro enodoado de mágoas e renova a convicção cristã de que aprendemos neste ano uma lição muito valiosa, seja ela qual for.

Tenho lá minhas dúvidas se isso realmente vai ser assim ou se, como nas diplomações dos políticos em quem votamos e por quem brigamos, virtual e presencialmente, ao menor sinal de “Lula livre” ou de “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, os convivas voltem a franzir o cenho e a rosnar, deixando de lado o pavê e aquela velha piada que sempre fazia um ou outro rir, menos por graça que por vergonha.

Ao que tudo indica, em 2018 as piadas natalinas serão de outro tipo. A era da inocência do “pavê ou pracomê” definitivamente ficou pra trás.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d