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Contra a leveza

E o livro que encontra na estante ao acaso antes de dormir é este que tem poemas como facas que cortam o ar, poemas como massas e gestos suspensos, poemas como se me pedissem para contar o primeiro pensamento da infância. Poemas todos criados por uma força que se agrupa no mais baixo do ventre e no mais alto da cabeça e no mais fundo dos olhos. Poemas contra a leveza. Letras e sinais gráficos e depois as conjunções adverbiais são as primeiras a afundar quando atiramos tudo ao mar, arrependidos que estamos do que dissemos e escrevemos.  E agora resta somente rasurar à espera de que esta outra história se firme no papel, e depois festejar o prumo e a sombra que projeta. Esse livro que ela traz até aqui carregado nas mãos como bicho morto encontrado à beira da estrada a quem o criador pedisse que fosse até o mais longe para enterrar porque ele não tem mais nem forças nem recursos - esse livro é um engano. Então partimos madrugada adentro feito estivéssemos num ...

A língua de P

Entardecia, e P ainda se perguntava se. P sorridente batucando no celular e reparando em cada foto e cada mensagem. P em seguida despida e chorosa e então novamente alegre como a saudar entre saltos no abismo um amor que chega. P subitamente disposta ao acordar e no meio da noite entre tantos livros pescar um exemplar mais surrado da estante e nele ler não palavras, mas figuras. P adivinhar agora num corpo alheio a trama enovelada de outra história cujo ponto de partida havia sido o acaso de estarem de frente ao outro no meio da rua olhando-se sem se ver. P já esquecida de que lhe ocorresse semelhante acontecimento a esta altura da vida. P tão jovem e sem filhos nem casa mas já mordida de uma desesperança que ameaça desde cedo apossar-se de corpo e tudo. P então pergunta enquanto se despe se o ambiente hostil vai passar e se o ar vai se tornar mais respirável.  P sem se interessar de fato por nada exceto o ato de descer e subir escadas e depois atrav...

A crônica de uma crônica

Não sei como esta semana termina e se termina. Tinha começado a escrever defendendo “Ele, sim”, um texto paródico no qual enumerava uma série de absurdos e escatologias políticas a fim de tirar sarro com o voto em um certo candidato. Mas parei no meio do caminho ao lembrar do Antonio Prata e aquela declaração mal interpretada de guinada à direita, ainda em 2014, que depois mereceu uma explicação do cronista e gerou um fastio generalizado diante da burrice coletiva. Pensei também no ator Alexandre Nero, que imitou recentemente um típico eleitor desse candidato num vídeo e foi compartilhado centenas de milhares de vezes por quem acreditou que se tratava mesmo de uma declaração de apoio. Sem saída, considerei atacar frontalmente os eleitores do dito-cujo, xingá-los como fazem nos trios elétricos os seus entusiastas, mas tenho gente na família que vota nesse tal candidato e não queria magoar ninguém. Exceto num caso extremo como parece ser este agora, então lá vai. Aí me pus a esbo...

Disparate de sábado à noite

Um preâmbulo: de repente incerto, ainda tossindo muito, uma dor no peito. Tudo isso junto produz uma intranquilidade moderada que vai passar daqui a pouco, mas, enquanto não passa, continua a batucar de leve no corpo. Uma advertência: "disposto apesar do cansaço" é algo que eu diria agora se realmente a disposição superasse o cansaço, o que talvez se prove verdade apenas dentro de algumas horas, quando as duas forças se enfrentarem cara a cara no meio do salão de festa. Um protesto vão: venta bastante para um dia como hoje. Fecho as portas, cerro as janelas.   Uma platitude: já é setembro. É quase susto. Um pavor de que o ano se apresse a terminar. Peço educadamente que se detenha ainda um bocado antes de sair nessa carreira toda no rumo da esquina. O retrato: a paisagem da BR 116. Focos de incêndio aqui e ali, nuvens azuis de fumaça cobrindo a pista, o canteiro central dominado por lixo, animais pastando à margem das vias, homens protegendo-se do sol em fiapo...

Excesso

Hoje procurei descanso depois de 15 dias intensos trabalhando exclusivamente numa mesma palavra, redigindo frases que se pareciam – fulano disse, sicrano retrucou e por aí vai - e variando o vocabulário apenas o necessário, de modo que me sentia exaurido a ponto de começar e desistir e precisar recomeçar, tudo isso num único parágrafo. Pensei: é o caso de estar à toa uns bons minutos considerando unicamente esse nada essencial ao qual voltamos vez ou outra quando precisamos encarar certas verdades. Então foi melhor suspender as tarefas da noite desta quarta-feira – muitas, infinitas -, todas fundamentalmente jornalísticas e portanto cheias de uma certeza que às vezes falha, mas que sempre precisamos escamotear. Foi melhor parar um pouco e estar assim no meio da estrada como se à mercê de qualquer coisa.  Um vento mais forte, uma cabra vadia, um jagunço sedento ou uma visagem que de repente convide a entrar no mato e seguir moitas afora em procura sabe-se deus do q...

Ainda o bonsai

O bonsai está morto, e nada se salva.  É melhor enterrá-lo, mas suas raízes permanecem firmes no pequeno vaso vermelho que trouxe da praça e instalei ao lado de uma estante de livros. Ontem mesmo testei a saúde da planta: chacoalhei o galho, a ver se parecia amolecido como as folhas já murchas sugeriam, mas, pra minha surpresa, o tronco diminuto se revelou muito rígido e em certa medida resistente. Feito um morto que permanecesse de pé muito tempo depois de morto. Não tiro disso qualquer lição. É apenas uma planta fincada num jarro qualquer decorando uma casa como tantas outras, nem mais nem menos pobre ou infeliz do que as demais.  Embora a gente (eu) costume carregar nas tintas e fazer parecer que a tonalidade de uma luz que entra pela janela é mais intensa do que de fato é.

Um jeito desleixado de fazer as coisas

Às vezes é preciso ir bem mais fundo pra encontrar qualquer coisa, sobretudo se estivermos escrevendo num bom ritmo, empenhando nisso certo tempo mas não todo o tempo do mundo, entendem? Então é preciso ir fundo, mas não vagarosa e pacientemente, mas fundo de um jeito mais rápido, o que talvez não seja uma boa maneira de ir a qualquer lugar. Estou falando em tese, mas poderia exemplificar com a ideia de um conto sobre o qual venho pensando e cuja história já esbocei inúmeras vezes. Todavia falta sempre algo, uma coisa determinante, um estopim ou gatilho ou outro mecanismo que faça disparar essa massa de energia sem nome acumulada durante tanto tempo. O sentimento necessário ao começo de uma história que exigirá certa dose de disposição para andar um pouco e entrar nesse vão escuro ou excessivamente iluminado que está no fim de toda grande busca. A Grande Busca. E, uma vez nele, remexer um bocado as coisas, tirar os móveis do lugar e reparar no arranjo de tudo, d...