Pular para o conteúdo principal

A crônica de uma crônica

Não sei como esta semana termina e se termina. Tinha começado a escrever defendendo “Ele, sim”, um texto paródico no qual enumerava uma série de absurdos e escatologias políticas a fim de tirar sarro com o voto em um certo candidato.

Mas parei no meio do caminho ao lembrar do Antonio Prata e aquela declaração mal interpretada de guinada à direita, ainda em 2014, que depois mereceu uma explicação do cronista e gerou um fastio generalizado diante da burrice coletiva.

Pensei também no ator Alexandre Nero, que imitou recentemente um típico eleitor desse candidato num vídeo e foi compartilhado centenas de milhares de vezes por quem acreditou que se tratava mesmo de uma declaração de apoio.

Sem saída, considerei atacar frontalmente os eleitores do dito-cujo, xingá-los como fazem nos trios elétricos os seus entusiastas, mas tenho gente na família que vota nesse tal candidato e não queria magoar ninguém. Exceto num caso extremo como parece ser este agora, então lá vai.

Aí me pus a esboçar um parágrafo muito franco sobre as razões pelas quais não podemos votar nesse candidato hipotético depois de tudo que ele já disse sobre mulheres, gays e negros, além das coisas sobre o 13º salário que seu vice vem repetindo aos quatro ventos num aceno ao desmonte das leis trabalhistas. 

Em seguida releio o que escrevi e sorrio satisfeito, mas logo desisto ao constatar que, no dia seguinte, o texto talvez fosse lido, se muito, pelo grupo de pessoas que pertencem à mesma bolha que eu. Gente com quem troco algumas palavras cúmplices nesse esforço meio desesperado de autoconvencimento de que as coisas não podem estar tão ruins assim.

Bom, eu sinto muito, mas elas estão, sim. Estão ruins como nunca parecem ter estado antes.

Na contramão da intenção inicial, arrisco na sequência um melancólico arrazoado sobre a bolha virtual na qual boa parte de nós vive, colegas cujo maior orgulho é dizer para si mesmas que sua timeline é 100% progressista quando, na esquina de casa, uma carreata bloqueia a rua e pede voto para um certo candidato cujo vice (ele de novo) defende uma nova Constituição (sem a parte chata da participação popular) e o armamento como resolução de conflitos.

É uma pena, mas a sua bolha higienizada social e ideologicamente não serve para muita coisa neste momento, concluo um tanto amargo.

Num arroubo de clarividência, deduzo que, ainda assim, essa crônica resignada e crítica sobre a bolha só seria conhecida e eventualmente curtida dentro da própria bolha. No fim das contas, não surtiria o mais remoto efeito sobre o voto de quem efetivamente pode decidir o futuro do País neste momento, a quatro dias das eleições.

É aí que a ficha cai como a mão pesada de um pugilista sobre o meu queixo: nada do que eu faça ou diga a esta altura vai alterar significativamente esse quadro diante do qual alguns amigos e amigas começam a se mostrar visivelmente preocupados. Certo?

Talvez. 

Convicto de seu alcance limitado e certo de que falar sobre esse tema me trará mais desconfortos do que satisfações, sigo em frente e digo a mim mesmo enquanto escrevo que, mesmo tardiamente, não custa nada repetir a quem conseguiu chegar até aqui.

Por favor, pensem muito bem antes de votarem naquele candidato no domingo. Recuperem as atrocidades que ele já falou. E não as tratem como trivialidades. Porque elas não são. Elas são o que são: criminosas.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d