Pular para o conteúdo principal

Contra a leveza


E o livro que encontra na estante ao acaso antes de dormir é este que tem poemas como facas que cortam o ar, poemas como massas e gestos suspensos, poemas como se me pedissem para contar o primeiro pensamento da infância.

Poemas todos criados por uma força que se agrupa no mais baixo do ventre e no mais alto da cabeça e no mais fundo dos olhos.

Poemas contra a leveza.

Letras e sinais gráficos e depois as conjunções adverbiais são as primeiras a afundar quando atiramos tudo ao mar, arrependidos que estamos do que dissemos e escrevemos. 

E agora resta somente rasurar à espera de que esta outra história se firme no papel, e depois festejar o prumo e a sombra que projeta.

Esse livro que ela traz até aqui carregado nas mãos como bicho morto encontrado à beira da estrada a quem o criador pedisse que fosse até o mais longe para enterrar porque ele não tem mais nem forças nem recursos - esse livro é um engano.

Então partimos madrugada adentro feito estivéssemos num conto de Moreira Campos escapando de visagens e ameaças de homens em caminhões que cavam mentalmente as nossas tumbas antes de nos enfiarem lá dentro.

Como somos jovens e espertos, corremos à mata assim mesmo com medo mas tentando chegar ao outro lado, que nunca há de haver esse avesso.

E nisso sorrimos.

Ela então devolve o livro ao lugar de onde o retirara instantes atrás. Depois deita na cama enrodilhada, um gato antigo da casa. 

Pede que durma ali, e eu digo que agora já é tarde pra dormir.  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d