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Manipular caixas

Abrir caixas, desembrulhá-las como presentes que chegassem pelos Correios depois de muito tempo de espera. De dentro delas pescar os objetos guardados por anos e anos, pastas empoeiradas, livros, papéis inservíveis, revistas antigas cujas capas apresentam rostos que desapareceram ou que agora simplesmente já não têm a importância que tinham. Verificar nas caixas a passagem do tempo, atentar para o que envelhece e o que ainda é presença, experimentar uma transmissão de algo que não se perde e reconhecer que a matéria esboroa sempre. Ter com as caixas agora abertas uma relação do mágico com a cartola da qual retira um a um utensílios fantásticos com os quais ludibria a plateia. Organizá-las por tamanho apenas, nomes e cores e títulos misturados uns aos outros em duas estantes apertadas contra a parede branca de uma cal lambuzada por mãos que não conheço. E fotografar cada parte como forma de ir tendo com o arranjo uma familiaridade perdida. E nessa tentativa ir deix...

Dois autores que renovaram a literatura do trauma*

A bielo-russa Svetlana Aleksiévich dizia que a Rússia tem alma beligerante e que seu povo não conhece uma vida sem ideal de grandiosidade, algo que, por sua vez, se traduzia na arte, notadamente na literatura, seja pela monumentalidade das obras, seja pela natureza engajada da reflexão artística. A revolução de outubro precipitou esse espírito russo num caldeirão de disputas e confrontos.  Dele emergiu uma arte interpelada constantemente pelo real, mas um real que era agora o resultado direto de condicionantes ideológicas e históricas no centro das quais estava a experiência socialista. Em O fim do homem soviético , a ganhadora do Nobel escreve que, passado tanto tempo desde 1917, o ano das duas revoluções, pretendia encontrar respostas para o drama sob o regime comunista nas histórias pessoais de homens e mulheres comuns, cavando fundo no que chamou de socialismo doméstico ou interior.  Esse é um dos legados para a literatura: a jornalista e escritora pode esmerar s...

O desfecho

E agora que termino penso por um instante no nexo que fará juntarem-se coisas tão díspares. O pai, L, o restaurante e o aniversário da primeira namorada, que hoje comemora sabe-se lá que idade, mas é certo que festeja neste 16 de maio o nascimento. Eu não serei capaz. Estou faminto, tenho pouca energia pra raciocinar e estabelecer pontos de contato lógico entre o que quer que seja, sobretudo em relação a fatos que se passaram quando tinha 16 anos. Consigo, porém, distinguir um estopim ou gatilho – um elemento que desencadeia esse processo a partir do qual o fluxo se desprende e recua no tempo e avança e enxameia tudo com uma qualidade de agoniada incerteza.  Desejamos sonho e beleza e mistério, mas mal pomos os pés na rua tudo que queremos é uma rede armada, lençóis trocados e uma tarde sem sol. O pai, L, o restaurante. Uma linha que nasce distante e chega ao dia de hoje. Não ontem ou depois de amanhã, mas agora. O peso, a ausência, a saudade, o irremediável. Constânci...

Fechado

É hora do almoço, e o restaurante fecha às 13h em ponto. Funciona como uma repartição muito antiga de cuja pontualidade dependesse o equilíbrio de energias universais, polos que se opõem e nessa disputa mantêm-se entretecidos um ao outro.  Mas é apenas um restaurante, lugar aonde vou se preciso comer de manhã cedo ou no meio da tarde. Hoje ainda não comi. Estive durante muito tempo engolfado numa espécie de nódoa. Um visco que tento afastar, mas está aqui. Gruda, desliza, recobre o corpo, pernas e braços, pescoço e tórax. Prende-se ao pau e aos pés. Não há como descamá-lo. Inútil desfazer-se da sombra. Sorte se entrasse numa loja de cosméticos e me vendessem o produto adequado para esfoliar da pele tudo que é matéria morta e veneno próprio. Mas nisso estou com pouca sorte. A esta hora nada abre, tudo fecha. Como se disso dependesse o arbítrio que governa cada pequena forma de vida.

Livro sobre o pai

Há dias escrevo sobre o pai. Paro e releio. Agora mantenho distância, faço que não estive durante uma semana espremendo trinta anos numas páginas, empurrando a vida folha adentro. O pai não sabe, o pai nunca sabe. Releio mais uma vez. Estou agoniado, pesco um trecho que me parece excessivamente ruim, escrito numa língua que não sei qual é. Outro é muito triste. Não quero escrever um livro triste, digo a mim mesmo. Mas talvez só possa escrever algo assim. Ontem falei com a filha no telefone. Dois ou três minutos. Depois ela pediu pra desligar. Estava cansada de falar.  Chorei. Ela não sabe. O pai também não. Ninguém, na verdade, exceto a vida que faço caber num punhado de areia cuja métrica aprendi a chamar de caracteres. Choro ao telefone num cômodo escuro do trabalho, e o que se segue é um arrazoado sobre o pai.   Então hoje desejei expurgar uns milhares de caracteres novamente. Voltei ao livro do pai. Mas o livro do pai é meu, e é um livro triste. O pai ...

L foge

Digo isso, que invento L tanto quanto ela me inventa, e de pronto me ponho a imaginar que durante todo esse tempo estivemos, eu mais que ela, presos a um desenho que na verdade é outro e mais outro. De modo que essas folhas reunidas num bloco único de anotações, documentos que recontam uma história, de repente esboroam e não são nada senão um amontoado de desimportâncias acumuladas como rolhas de garrafas de vinho guardadas num recipiente. O que essas rolhas contam? O que dizem também livros numa estante e rastros de uma passagem estrangeira? Vestígios, ruminações, pequenos acidentes que danificaram estruturas, lacunas e ossadas encontradas no futuro por pesquisadores que olham com desdém para toda a vida que já se extinguiu. Coisas mínimas, detalhes, miudezas de corpo e alma, um cabelo que segue ao pé da orelha, um sinal, um jeito de tropeçar e outro de abrir portas, mais um de olhar o que se passa no mais longe. E finalmente um modo particular de estar ausente. É en...

A invenção de L

Há tempos não tenho notícias de L, por onde anda, o que faz, se ainda fuma um cigarro atrás do outro quando a pressão no trabalho aumenta. Não sei o que L deseja, se corre na praia às primeiras horas, se fez a nova tatuagem que disse que faria tão logo reunisse coragem e dinheiro, se os filhos estão bem, se mandou realmente aquela mensagem para alguém a quem repete com frequência odiar mas que no fundo tenho certeza de que ama. L desapareceu. É fantasma. Não a mulher que conheci cinco anos atrás andando numa calçada da cidade. Não a mulher que encontrei numa esquina parada sob essa luz amarela da rua, envolta num halo de interrogação e desespero. L esfumou-se, virou pó, onda, maresia, essas substâncias vaporosas que escapam mal damos por elas. L é invenção.