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Dois autores que renovaram a literatura do trauma*


A bielo-russa Svetlana Aleksiévich dizia que a Rússia tem alma beligerante e que seu povo não conhece uma vida sem ideal de grandiosidade, algo que, por sua vez, se traduzia na arte, notadamente na literatura, seja pela monumentalidade das obras, seja pela natureza engajada da reflexão artística. A revolução de outubro precipitou esse espírito russo num caldeirão de disputas e confrontos. 

Dele emergiu uma arte interpelada constantemente pelo real, mas um real que era agora o resultado direto de condicionantes ideológicas e históricas no centro das quais estava a experiência socialista. Em O fim do homem soviético, a ganhadora do Nobel escreve que, passado tanto tempo desde 1917, o ano das duas revoluções, pretendia encontrar respostas para o drama sob o regime comunista nas histórias pessoais de homens e mulheres comuns, cavando fundo no que chamou de socialismo doméstico ou interior. 

Esse é um dos legados para a literatura: a jornalista e escritora pode esmerar seu estilo ouvindo o coro de vozes que, juntas, davam testemunho dos horrores comunistas, um painel que se completa com outras duas grandes tragédias do século XX (o acidente nuclear de Tchernóbil e a Segunda Guerra Mundial).  

Se a perspectiva de Svetlana é microscópica, porém, outro autor marcante do século XX, o russo Varlam Chalámov (1907-1982), forjou uma prosa em tudo única: seca e dilacerante, narrou com precisão o inferno vivido nos campos de trabalho forçado na União Soviética durante o período stalinista. Chalámov esteve algumas vezes a leste da Sibéria, para onde foi mandado por atividades consideradas subversivas, como imprimir e distribuir panfletos. Os seis volumes de Contos de Kolimá são o registro desse pesadelo. 

Assim como em Svetlana, nele se observa mais que uma carpintaria memorialística. Apanhados em conjunto, os dois autores criaram um universo que dá a ver com exatidão o funcionamento de uma máquina estatal cuja razão de ser era aniquilar qualquer vestígio de dissidência, esmagando o humano. 

Anos depois, a resposta da literatura seria precisamente essa: restituir as vozes individuais e coletivas, recuperar a capacidade de fala, não permitir que os eventos traumáticos se perdessem nos descampados do tempo e denunciar toda arbitrariedade. Expoentes de uma escrita quase anti-literária, Svetlana e Chalámov empregaram recursos jornalísticos amalgamamos aos do romance. 

Nesse sentido, é famoso o posfácio de O artista da pá, terceiro volume da série do autor russo. Ali, o escritor explicita sua verdade artística: o leitor perdeu a confiança na literatura, mas continua à procura de respostas para as questões eternas. Sendo assim, afirma Chalámov, seu desafio foi escrever de modo a que o resultado fosse nada menos que indistinguível da vida real.

*Publicado no jornal O POVO em algum momento do ano passado

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