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O desfecho



E agora que termino penso por um instante no nexo que fará juntarem-se coisas tão díspares. O pai, L, o restaurante e o aniversário da primeira namorada, que hoje comemora sabe-se lá que idade, mas é certo que festeja neste 16 de maio o nascimento. Eu não serei capaz. Estou faminto, tenho pouca energia pra raciocinar e estabelecer pontos de contato lógico entre o que quer que seja, sobretudo em relação a fatos que se passaram quando tinha 16 anos.

Consigo, porém, distinguir um estopim ou gatilho – um elemento que desencadeia esse processo a partir do qual o fluxo se desprende e recua no tempo e avança e enxameia tudo com uma qualidade de agoniada incerteza. Desejamos sonho e beleza e mistério, mas mal pomos os pés na rua tudo que queremos é uma rede armada, lençóis trocados e uma tarde sem sol.

O pai, L, o restaurante. Uma linha que nasce distante e chega ao dia de hoje. Não ontem ou depois de amanhã, mas agora. O peso, a ausência, a saudade, o irremediável.

Constâncias. É talvez isso o que me assusta. Tudo que se mantém inalterado à força da passagem do tempo. Estruturas intactas, datas imutáveis, laços incontornáveis. E, no meio disso tudo, do que é e apenas é sem a necessidade de que pareça ser, o arbítrio de, entre todas as horas possíveis num dia, alguém escolha uma e apenas uma na qual baixaremos a porta e faremos cessar todo o movimento.

Donde concluo, um pouco por fanfarra, um pouco a sério: a vida consiste nessa dança entre constância e movimento. Uma dessas dualidades mais clássicas. Acaso. Constância. Acaso. E assim por diante, até que o relógio marque outra hora e sejamos agora novamente outra pessoa cruzando uma rua e acidentalmente ocupando um espaço que até ontem pertencia a alguém que ainda não tinha entrado na história. 

Por isso o papel do acidente, a inevitabilidade da ligação paterna, a precariedade do encontro amoroso e o passado que volta a golpes de mar sacudido em ressaca.

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