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Não olhe pra trás

Abro o livro ao acaso como se cortasse um baralho e de lá puxasse uma carta cujo naipe já soubesse de antemão. Então encontro essa história. Uma garota que perdeu a memória depois que seu namorado foi embora. Na verdade, ela tem amnésia após bater a cabeça contra o chão enquanto era suspensa pelas colegas num ensaio qualquer da faculdade. Ou da turma de teatro. O fato é que a menina esquece tudo no lapso de um ano. Apaga rostos e sensações, catástrofes e gostos, marcas e datas. Esquece quem é, do que gosta, quem são seus pais e por quem se apaixonara. Mesmo um evento como o 11 de Setembro desaparece totalmente de suas lembranças.  Num instante, ela sofria por causa do término da relação. No outro, está vazia de tudo.  Para ajudar a lembrar, passa a anotar bilhetinhos recordando a si mesma que não come carne ou que precisa alimentar o gato de vez em quando. Até que, vencido algum tempo, a memória se restabelece. O corpo recobra autonomia. E o namorado, que havia esta...

A resposta de L

Antes de que nos falássemos, porém, houve esse momento em que L meio bêbada quis fazer acreditar que estava muito triste por causa de algo que não queria dizer. Mas L não se entristece de fato, é uma mulher muito forte e segura que ri e macera toda a matéria com as mãos e os pés. Eu lhe disse isso, usei a imagem certo de acharia bonita. Afinal concordamos em que os pés e as mãos, as extremidades do corpo, desempenham papel fundamental na felicidade. Sofremos sempre e nos alegramos, e toda alegria e agonia começam pelos pés, começam pelas mãos. Então lembramos brevemente de um episódio e depois de outro nos quais confirmávamos a valência dessa verdade segundo a qual há nas pontas de cada um modo de decifrar o futuro, nas mãos carregamos mais certezas que dúvidas, nos pés conduzimos mais acasos que rotas. Não surpreende que leiam as palmas à procura de significados, que dedilhem as linhas e nessas linhas adivinhem sentidos que permanecem ocultos. Palmas e plantas, ela respo...

L no passeio

Tornei a falar com L, agora noutro contexto, ambos já curados e exaustos de tudo que foi carne e sangue. Ela ainda toda ânsia de mudança, um corpo que vai em frente e procura. E se não acha não se detém no que não tem importância. Para e escreve que deseja tudo diferente. Uma vida? Um ano? Um livro? Ela não responde, apenas que precisa dessas coordenadas que não levem ao mesmo lugar, que está na rua enquanto digita e não sabe se conhece essas pessoas, se já as viu em sonho, se são elas mesmas inventadas, criações suas postas em existência por capricho. Se de algum modo ela se descolou e agora flutua sobre as coisas. Penso na ênfase da palavra, o diferente caído ao final como um pingente muito pesado que faz o pescoço curvar-se e nessa curva perder talvez o que possa ter de certeza. No diferente uma porção de fé e força, tanta energia gasta na procura. Afinal, diferente do quê? E para quem? Pergunto se ainda tem certezas, e parece que desconverso, que procuro desvios no...

Da chuva sei apenas o cheiro

De pé no centro do quarto olho o fluxo de carros na avenida. Ordenado, unidirecional, reto. Tenho inveja das coisas que já tão cedo vão num caminho certo. Ainda não são oito da manhã. Dormi mal, as vias respiratórias obstruídas, uma névoa encobrindo a vista como se andasse em meio à chuva, o colchão que maltrata as costas. O mundo de novo como três lanças atravessando o corpo. Lembro que fez sol no São José. Crestada toda esperança. Não choverá. Verdade que choveu na madrugada e a água entrou pela janela, molhando roupas e trapos atados em nó? É o que dizem. Não estava acordado e perdi. Da chuva guardei o cheiro tão somente, a sensação de que algo passou enquanto me distraía. Corrente de ar fresco que também é chuva. Fico com essa lembrança. O que não é, mas é como se fosse. O que não basta a ver se bastasse. Deitado ainda, escrevia na cabeça o que escreveria quando levantasse finalmente. Mas, agora que escrevo, tudo é de outro modo, nada como quando olhava essa fresta...

Papéis antigos

Remexendo papéis, revirando o próprio lixo à procura das pistas certas, revolvendo as peças no guarda-roupa e identificando marcas nas paredes, nas pernas, braços. Traços invisíveis, trajetórias percorridas de muito tempo atrás. Um gesto flagrado. Um nexo. Nesga de qualquer coisa. O risco de procurar e o de achar contido no mesmo precipício que é falar. O risco de perder e deixar passar. Uma faca cega, uma caneta estourada na bolsa, um caderno, um bloco de anotações. Um inventário de coisas para as quais se olha e num instante não estão mais lá. Marcas, grafismos, restos de corpo e fios presos. O metro exato da desistência, o marco inaugural do fracasso. Um coletivo de impressões deixadas nesse caminho da boca ao ventre e de lá até o mais dentro. A passagem de um astro sem nome. Uma força cuja grandeza sem parâmetro assusta os cientistas. Sem campo de estudo, sem objeto, sem método. Toda uma área a descoberto. Todo um sistema por existir. Toda uma pesquisa por fazer...

O naufrágio da Femme Bateau

Agora entendo que tenha estado tanto tempo longe. Voltar a falar é um erro. Vejam como é a língua, inventa territórios, funda impérios onde não há nada. Palavra mágica que consome e vive do próprio gozo. Uma conversa pessoal é sempre essa busca de reinado fantástico e semeadura de vida onde quer que possa haver vida. A língua é contra a aridez, jamais a favor. Por feroz e cortante, está plantando e nesse plantio espera e aguarda. Nem que seja a comprovação de que nada brota, nada vive, nada fecunda. Daí que falar sozinho seja tão produtivo. Balbuciar, dizer uma novena íntima que ninguém jamais escute. Uma ladainha que ninguém jamais ouça. Lembro da imagem da ressaca na praia umas poucas semanas atrás. A areia revolvida, as pedras deslocadas, os bancos destroçados, tudo que era paisagem natural e memória coberto de areia. Nada no lugar. Uma tristeza, mas também alívio. Não era apenas eu que me punha fora da ordem. Era tudo, o mar, as calçadas, o vento, o guarda-...

Escreve e apaga

Outro sonho. O mesmo da semana passada. Acordo mais tarde do que o habitual. Estico as pernas. Dores nas costas novamente, fisgadas persistentes que repuxam o músculo, um aviso intermitente bipando na consciência: o tempo passa. Fragmentos, rostos, um cheiro. Penso em dar uma volta de bicicleta, mas logo desisto. De repente o sol agride, os carros parecem barulhentos, as ruas muito cheias, a perspectiva de encarar o mar e diante do mar as palavras engasgarem. Checo o celular. Abro portais de notícias e vejo grupos de Whatsapp. Dezenas de mensagens aguardando resposta como ganidos de cães no meio da madrugada. Leio um artigo sobre o inominável. Vocábulos estranhos que cada língua inventa para atender necessidades próprias. Em japonês, por exemplo, é possível descrever a sensação de enamoramento diante de alguém que se acaba de conhecer. Algo como uma premonição. Que palavras posso usar agora? Quais têm serventia? Aperto control + F mentalmente. Não encontro nada. ...