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Postagens

Papéis antigos

Remexendo papéis, revirando o próprio lixo à procura das pistas certas, revolvendo as peças no guarda-roupa e identificando marcas nas paredes, nas pernas, braços. Traços invisíveis, trajetórias percorridas de muito tempo atrás. Um gesto flagrado. Um nexo. Nesga de qualquer coisa. O risco de procurar e o de achar contido no mesmo precipício que é falar. O risco de perder e deixar passar. Uma faca cega, uma caneta estourada na bolsa, um caderno, um bloco de anotações. Um inventário de coisas para as quais se olha e num instante não estão mais lá. Marcas, grafismos, restos de corpo e fios presos. O metro exato da desistência, o marco inaugural do fracasso. Um coletivo de impressões deixadas nesse caminho da boca ao ventre e de lá até o mais dentro. A passagem de um astro sem nome. Uma força cuja grandeza sem parâmetro assusta os cientistas. Sem campo de estudo, sem objeto, sem método. Toda uma área a descoberto. Todo um sistema por existir. Toda uma pesquisa por fazer...

O naufrágio da Femme Bateau

Agora entendo que tenha estado tanto tempo longe. Voltar a falar é um erro. Vejam como é a língua, inventa territórios, funda impérios onde não há nada. Palavra mágica que consome e vive do próprio gozo. Uma conversa pessoal é sempre essa busca de reinado fantástico e semeadura de vida onde quer que possa haver vida. A língua é contra a aridez, jamais a favor. Por feroz e cortante, está plantando e nesse plantio espera e aguarda. Nem que seja a comprovação de que nada brota, nada vive, nada fecunda. Daí que falar sozinho seja tão produtivo. Balbuciar, dizer uma novena íntima que ninguém jamais escute. Uma ladainha que ninguém jamais ouça. Lembro da imagem da ressaca na praia umas poucas semanas atrás. A areia revolvida, as pedras deslocadas, os bancos destroçados, tudo que era paisagem natural e memória coberto de areia. Nada no lugar. Uma tristeza, mas também alívio. Não era apenas eu que me punha fora da ordem. Era tudo, o mar, as calçadas, o vento, o guarda-...

Escreve e apaga

Outro sonho. O mesmo da semana passada. Acordo mais tarde do que o habitual. Estico as pernas. Dores nas costas novamente, fisgadas persistentes que repuxam o músculo, um aviso intermitente bipando na consciência: o tempo passa. Fragmentos, rostos, um cheiro. Penso em dar uma volta de bicicleta, mas logo desisto. De repente o sol agride, os carros parecem barulhentos, as ruas muito cheias, a perspectiva de encarar o mar e diante do mar as palavras engasgarem. Checo o celular. Abro portais de notícias e vejo grupos de Whatsapp. Dezenas de mensagens aguardando resposta como ganidos de cães no meio da madrugada. Leio um artigo sobre o inominável. Vocábulos estranhos que cada língua inventa para atender necessidades próprias. Em japonês, por exemplo, é possível descrever a sensação de enamoramento diante de alguém que se acaba de conhecer. Algo como uma premonição. Que palavras posso usar agora? Quais têm serventia? Aperto control + F mentalmente. Não encontro nada. ...

Ressaca do mar

É tentador tentar extrair qualquer tipo de lição das coisas aleatórias, sobretudo dos fenômenos cuja natureza escapa à disciplina. Feito a ressaca do mar, que repovoa ruas e calçadas com os restos de objetos que resolvemos deixar pra trás, seja por esquecimento, seja porque é preciso.  Garrafas, copos, talheres de plástico, trapos de guarda-roupa, pedaços de papel com inscrições já gastas. E, no entanto, basta um golpe de mar pra que tudo volte em ondas. Assim, como não olhar uma ciclofaixa soterrada e supor que os caminhos estejam obstruídos? Ou passar pelo letreiro novidadeiro de “Fortaleza” encoberto pela areia e não achar que vivemos numa cidade submersa, os pés enfiados nesse areal que nos prende ao chão? Por sorte há por ali também o São Pedro, não o santo das chuvas, mas o edifício. Carcomido, mas ainda sentinela. Testemunha ocular da varrição das águas, o edifício em formato de embarcação persiste montado nuns alicerces antigos, frágeis e firmes a um só tempo....

Um sonho

E o sonho era assim. Viajava sozinho pra uma cidade fora do país com o cartão de crédito emprestado de outra pessoa. Chegava lá, embarcava no metrô e ia a um local que agora não lembro ao certo, mas que parecia um museu. Nesse museu que não era museu, havia uma mesa, e nessa mesa os pratos estavam postos para um jantar ao qual eu tinha sido convidado por alguém desconhecido. Aparentemente, um dos outros presentes era ninguém menos que Mario Vargas Llosa, que em princípio não deu trela para a minha participação anônima naquele acontecimento festivo cujo objetivo não estava claro pra mim nem pra ninguém. Até que, lá pelas tantas, o Vargas Llosa, que estava numa cadeira de rodas, se irrita profundamente com algo que eu fiz ou disse, não sei direito, apenas que o escritor só não se pôs de pé porque enfim não podia. Exaltado, o peruano exige minha prisão a alguém próximo. Uma discussão começa, eu retruco, tento manter a calma, mas as circunstâncias – sozinho numa cidade di...

Ressaca

Acordei com a lembrança vaga de um sonho que depois fui deixando de lado por causa de outra coisa. Então veio a imagem da ressaca do mar. Curioso que chamemos o fenômeno de ressaca, feito o mar bêbado ou exaurido de forças. Um mar já esgotado de tudo que resolvesse devolver à terra o que não tivesse serventia. Quando é justo o contrário. O mar precipita, o mar arrebata, o mar avoluma e deita fora, o mar invade e ocupa. O mar pleno e não depauperado.  É quando apenas olhamos de longe as ondas quebrarem. Um parapeito que se desmantela, um banco, uma placa de trânsito, as paredes de uma barraca, os tapumes da construção mal-servida de qualquer propósito. Mantida a distância segura, fotografamos o fenômeno.  A gente se avizinha do risco na esperança de que o abismo de água não olhe de volta e nos engula.   Porque não se repete dizemos que toda ordem de coisas excepcionais é fenômeno. Luas mais cheias, ventos mais fortes, mares encrespados, o so...

O lugar do paraíso

Depois de tudo é o estranhamento, a sensação de que não pertencemos a qualquer canto e mesmo o escrito soa como se de outro, outra a voz expressa ali, colhida talvez num desses instantes em que de fato somos mais um terceiro, alguém para quem olhamos e vemos não a nós mesmos, mas um corpo alheio que tinha lá suas dores e agora cuida para que tudo cesse e passe e   seja como for encontre um lugar. Um lugar pra si. Um estranho, finalmente. Leio, e assusta o tom diverso da fala, as marcas, aquela ênfase insuspeita, uma certa tristeza que hoje não combina com o estado de espírito, mas então era tudo isso e não sabia. Então era como se estivesse à prova do fogo e do vento.   K move-se entre passagens, parada que está numa estação de pouso e decolagem. Ela espera. Mais que isso: faz dessa espera uma etapa, uma viagem. Também estrangeira, também deslocada, K não sabe se volta ao lugar de onde saiu ou se empreende novo mergulho no estranho mundo. Pois é ela que me mos...