É tentador tentar extrair qualquer tipo
de lição das coisas aleatórias, sobretudo dos fenômenos cuja natureza escapa à
disciplina. Feito a ressaca do mar, que repovoa ruas e calçadas com os restos
de objetos que resolvemos deixar pra trás, seja por esquecimento, seja porque é
preciso.
Garrafas, copos, talheres de plástico, trapos de guarda-roupa, pedaços de papel com inscrições
já gastas. E, no entanto, basta um golpe de mar pra que tudo volte em ondas.
Assim, como não olhar uma
ciclofaixa soterrada e supor que os caminhos estejam obstruídos? Ou passar pelo
letreiro novidadeiro de “Fortaleza” encoberto pela areia e não achar que
vivemos numa cidade submersa, os pés enfiados nesse areal que nos prende ao
chão?
Por sorte há por ali também o São Pedro,
não o santo das chuvas, mas o edifício. Carcomido, mas ainda sentinela. Testemunha ocular da varrição das águas, o edifício em formato
de embarcação persiste montado nuns alicerces antigos, frágeis e firmes a um só
tempo. O que o velho São Pedro achará de toda essa destruição? O que pensará sobre a perspectiva de uma roda-gigante sendo derribada a golpes
de rabissaca marinha?
Na ressaca, e nesta não foi
diferente, as ondas arrastam vagas de cascalhos e restos de construção, despejando
a mistura de detrito e plástico sobre os bancos e o piso podotátil do passeio. Antes
praia, o trecho de aterro do bairro boêmio aterrou-se: de maravilhamento, registrado
em fotos e filmes, mas também por obra do próprio mar, que atirou mais uma
camada de areia ao que um dia foi apenas água.
Nessa época, Juraci era o prefeito e o Estoril chamava-se Vila
Morena. Não se falava ainda em “requalificação” da Praia de Iracema, lugar de predicados
e defeitos equacionados no dia a dia, e as comunidades ribeirinhas eram tão marginais quanto hoje.
Agora, fileiras de pedregulhos
de tamanhos imensos a serviço da contenção não puderam com a força das águas. Que
não destruíssem o calçadão nem danificassem os equipamentos de ginástica instalados pela Prefeitura. Era sem tempo. Uma das qualidades da ressaca, além do seu volume crescente à mercê dos ventos, é sua
imprevisibilidade - mensura-se sua ocorrência, não sua intensidade. Neste ano as águas foram ainda mais fortes e sobrelevaram-se,
avançando na Ponte dos Ingleses, destelhando quiosques e dragando consigo a escultura do Sérvulo
Esmeraldo. O barquinho foi a pique. Afundou.
Nas redes sociais, Dodora, a
sempre amada de Sérvulo, perguntou: “Em que banco de areia estará nossa sereia?”
De pronto, me pus a imaginar um pescador que encontrasse a mulher-barco, dando
início a mais uma lenda do Ceará, que seria depois repassada de filho para filho, pai para
pai, mãe para mãe, transmitida com entusiasmo e fantasia feito os passos da índia
Iracema.
Vizinho rico e museu aberto de
nossas falências, o aquário tampouco escapou dessa fúria. Uns dias atrás, ainda
bem no começo, a ressaca deitou fora os tapumes da obra faraônica que o governo
tenta vender a italianos e chineses, de modo a abater uns vinténs do montante já enterrado ali, como quintessência de um novo
desenvolvimentismo.
Mas o monstro náutico é apenas o que é: repositório de caros cacarecos que
vão mergulhando em ferrugem antes de virarem cenário de algum filme
pós-apocalíptico. Concebido para o armazenamento de espécies em cativeiro e olhar extático de um turista ainda virtual, o
gigante de concreto amofina a vista de quem passa. Daí cobrirem-no, cercá-lo dos outros.
E essa é talvez a grande lição da ressaca, se dela é possível apreender alguma: as coisas sempre procuram uma desordem que as faça melhor. Que a natureza cuide em embaralhar, é sempre uma boa notícia. Que faça isso pondo abaixo estruturas aparentemente sólidas, é outra coisa boa de se ver.
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