Depois de tudo é o
estranhamento, a sensação de que não pertencemos a qualquer canto e mesmo o
escrito soa como se de outro, outra a voz expressa ali, colhida talvez num
desses instantes em que de fato somos mais um terceiro, alguém para quem
olhamos e vemos não a nós mesmos, mas um corpo alheio que tinha lá suas dores e
agora cuida para que tudo cesse e passe e
seja como for encontre um lugar.
Um lugar pra si.
Um estranho, finalmente. Leio, e
assusta o tom diverso da fala, as marcas, aquela ênfase insuspeita, uma certa
tristeza que hoje não combina com o estado de espírito, mas então era tudo
isso e não sabia. Então era como se estivesse à prova do fogo e do vento.
K move-se entre passagens,
parada que está numa estação de pouso e decolagem. Ela espera. Mais que isso:
faz dessa espera uma etapa, uma viagem. Também estrangeira, também deslocada, K
não sabe se volta ao lugar de onde saiu ou se empreende novo mergulho no estranho
mundo.
Pois é ela que me mostra um
trecho de algo que leio entre susto e conformismo. Susto porque bonito,
estranhamento porque eu mesmo teria escrito em outra época o que neste momento me
parece um conselho airoso, um arranjo de palavras que dava a exata noção do
estado e do ímpeto e de tudo que se avolumava e crescia.
Tudo que eu era e sou ali posto
num punhado de frases, tudo que era agonia e sorte e soluço reunido em palavras
que depois, tão pouco tempo depois, parecem as escrituras de uma espécie
alienígena nas paredes de uma caverna esquecida. As partituras de uma música antiga.
Como agora, como estas que
venho aqui depositar no altar das aflições. Como todos os desejos que
sacrificamos e os sonhos que abortamos.
Mas não é tristeza, tampouco
alegria. Não é sequer esse entorpecimento que filtra o real e devolve as coisas
à vista com uma camada de melancolia.
Não é nada disso. É apenas o
caso de sempre, uma falta de lugar no mundo, umas dores musculares que não
passam, a certeza de que a vida acontece noutro lugar, a outra hora, com outras
pessoas.
Não aqui nem agora, mas longe. E
isso não é nada senão uma falta insanável. Não é nada senão o reconhecimento de
que algumas pessoas só podem mesmo nascer defeituosas.
Como um brinquedo sem braço,
uma boneca sem perna, um carro sem rodas. Tento mover, mas tropeço sempre nessa
manquitola condição.
Manquitola. Vejam como uma
palavra tem estado espírito. Escrevo, e não é como se estivesse amputado de
algo fundamental. É apenas como se sentisse um calo nos dedos depois de usar
sapato novo.
Mas é mais. É mais que isso. E
não custa dizer que não tenho palavra que diga o tamanho do que há para além do
que não posso.
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